O sábado foi de mobilização para o resgate de famílias inteiras em todo o lado oeste de Canoas que, pouco a pouco, foi tomado pelas águas de uma enchente que entra para a História
No Centro de Operação, Controle e Comando, na Rua Humaitá, os telefones tocam sem trégua. Há uma semana que é assim. Desde o sábado passado, dia 27, quando começou a chover na cidade, os transtornos começaram a se acumular hora após hora, dia após dia, minuto a minuto. Um pouquinho mais a cada vez.
Mas nada, nem de perto, indicava o tamanho da ‘guerra’ que estaria por vir.
Nos dias 1º e 2 de maio, o comitê de gestão liderado pelo prefeito Jairo Jorge montado para gerenciar as ações de combate ao evento climático extremo começou a ter a dimensão do que a chuva imporia à cidade. Com as enchentes na região da Serra e o fechamento de estradas no Vale do Taquari e Paranhana, a quantidade de precipitação e a previsão daqueles dias seguintes indicava um quadro de catástrofe. Na quinta, 2, a cidade já havia recebido quase 400mm de chuva em pouco mais de quatro dias — praticamente o equivalente a um mês a cada 24 horas. Chuva e os rios subindo montaram a receita para o desastre. Não tardaria e o pior cenário — de caos — viria na sexta.
O primeiro comunicado para evacuação viria à tarde do dia 3 e valeu para o bairro Mato Grande. Ali, o Arroio Araçá já extrapolava seu leito e invadia ruas e casas. Na seqüência vieram os bairros Rio Branco, Mathias Velho, São Luís e, na manhã de sábado, Cinco Colônias, Harmonia e Fátima. Pronto: todo o lado Oeste de Canoas estava em alerta: era preciso abandonar as casas imediatamente onde ainda era possível; para grande parte destas comunidades, a água havia vencido a barreira da resistência individual.
Os alertas foram emitidos com antecedência média de 4h a 6h da invasão das casas para permitir que todos pudessem sair em segurança. Na noite de sexta, isso fez com que alguns moradores do Mathias Velho e do bairro Rio Branco considerassem ficar. Principalmente as famílias que vivem em sobrados ou prédios com mais de dois pavimentos sentiram que a água não os atingiria — ou pelo menos não chegaria durante aquela madrugada.
O que se viu foi uma manhã de desespero por todos os lados.
No Rio Branco, famílias inteiras presas em casas entre o segundo piso e o telhado clamaram por socorro em redes sociais aos borbotões. Idosos, crianças e animais domésticos. Pessoas com dificuldade de locomoção. Bebês recém-nascidos. Crianças autistas. Pessoas com deficiência. Pessoas que ficaram por medo de perderem tudo ou medo de serem roubadas no pouco que tem.
Antes das 7h da manhã, o Corpo de Bombeiros já organizava os grupos de resgate e salvamento com os voluntários que se apresentaram ao longo de todo o dia. Perto do Rio Branco, um grupo chegou a ser barrado em um bloqueio do Exército e o vídeo de um deles viralizou nas redes sociais, mas cabe aqui um importante esclarecimento.
O Exército não ‘barrou’ nenhuma ajuda.
A informação dada a todos é que os voluntários precisam se apresentar ao Corpo de Bombeiros antes de entrarem em áreas de resgate. É fundamental que em cada equipe tenha uma pessoa com experiência em manejo do barco e treinamento em resgate desta natureza. Não é fácil colocar pessoas idosas, com dificuldade de locomoção, em cima de barcos instáveis sobre as águas. Se não há treinamento ou experiência, acidentes acabam ocorrendo e não há como salvar pessoas em perigo se os voluntários se envolverem em perigo também.
Dito isto, foi graças a um grande número de voluntários que Canoas conseguiu manter vivos tantos e tantos conterrâneos nesse ingrato e silencioso combate contra as águas. Foram eles que trouxeram barcos, os pilotaram e subiram em casas quase submersas para ajudar pessoas a buscar um lugar seco para superar este sábado trágico. Se expuseram às águas em nome de pessoas que sequem sabem o nome, que não conhecem qualquer passado ou história, em virtude de uma esperança compartilhada em momentos de calamidade extrema que só me ocorre chamar humanidade.
Voluntários anônimos são os grandes heróis deste sábado de resgates impensáveis, quase impossíveis.
Eles e todas as forças de segurança pública, soldados do Exército e da Brigada Militar, guardas municipais, agentes da Policia Civil e do Corpo de Bombeiros, profissionais da Saúde e da Defesa Civil do município. Importante que se diga: quando Canoas precisou, eles estavam lá.
Estavam lá também muitos curiosos. É a maior enchente da história da nossa região, quem sabe do Estado, a atingir uma cidade com o tamanho de Canoas, encharcando a vida de 160 mil pessoas uma casa de cada vez em uma dinâmica barrenta e insistente. Mas nessas horas é que devemos lembrar o supremo ditado do bom senso que avisa que “o que mais ajuda menos atrapalha”. Gente com celulares em pé garantindo as selfies do dia em zonas de resgate foram um grande contratempo neste sábado de calamidades múltiplas.
Tivemos ainda os que levantaram drones desanimadamente em áreas de sobrevôo de helicópteros sujeitando pilotos e famílias retiradas do perigo a um inusitado acidente aéreo. O número de drones foi tanto que por volta das 13h o Comando Militar do Sul emitiu um comunicado aos veículos de comunicação pedindo auxílio na divulgação de um simples recado: frágeis drones são capazes de derrubar robustos helicópteros — não os coloquem no mesmo espaço aéreo. Ao todo, sete aeronaves percorreram o céu carregado de Canoas neste sábado tirando pessoas das áreas alagadas e levando até o campo da Ulbra, no bairro São José.
O amigo e jornalista Marco Leite acabou por criar um termo que designa bem esse comportamento: o ‘turismo de tragédia’. O prefeito de Roca Sales, Amilton Fontana, disse à Rádio Gaúcha que preferia que a Polícia Rodoviária fechasse os acessos da cidade aos veículos de passeio. “Não precisamos de pessoas vindo aqui tomar chimarrão e comer pipoca de vidros fechados só para ver o que é uma cidade destruída e postar no Instagram”, indignou-se.
Aos ‘turistas de tragédia’ daqui, aconselho eu, fiquem em casa.
Resgate e acolhidos
Até por volta das 19h deste sábado, a Prefeitura de Canoas ainda não tinha a confirmação de quantas pessoas havia sido resgatadas dos bairros que ficaram embaixo d’água na cidade. O prefeito Jairo Jorge disse, mais cedo, que o telefone colocado à disposição para informar os pedidos de resgate foi acionado 30 mil vezes ao longo do dia. Por baixo, ainda há 60 mil pessoas — e muitos animais de casa — nas áreas alagadas de Canoas.
É eles que tiram o sono do prefeito Jairo Jorge deste sábado para domingo.
O prefeito vem coordenado os trabalhos de contenção da enchente, primeiro, e resgate dos atingidos, agora, desde o início do período de chuvas. Mas o que aconteceu nos últimos dois dias, com cota de dique extravasada e casas enchendo de água lamacenta não tem precedentes. Em 1941, a maior enchente registrada até então, foi muito menor do que agora. “Estamos caminhando em um terreno desconhecido”, dizia JJ, em reunião do secretariado, horas antes de uma live na noite de sexta em que pedia a evacuação de bairros na cidade em que nasceu. Lembrou de 1968 quando o presidente-ditador Castelo Branco desceu de helicóptero no que hoje é a praça Lotário Steffens, no Rio Branco, para vistoriar uma grande enchente da época. “Hoje, lá está cheio de água, entrando na igreja, inclusive”. Referia-se à Imaculada Conceição, na testada da praça. “Ainda não sabemos se houve um rompimento do dique na Mathias, mas por volta das 4h da madrugada, a água chegou com força. Foi quando invadiu o Pronto Socorro. Não fomos vistoriar o dique porque nossa prioridade é salvar vidas, tirar as pessoas das casas cobertas de água”, disse o prefeito em entrevista à Rádio Gaúcha.
No Pronto Socorro, aliás, veio a notícia das primeiras vítimas da enchente: duas pessoas que estavam internadas na UTI perderam a vida antes de serem preparadas para evacuação. Cerca de 150 pacientes já deixaram o prédio que tem água em todo o primeiro andar. Por volta das 19h, 50 pessoas seguiam por lá, mas todos com baixo risco, sem gravidade, no aguardo de um transporte de barco para serem levados ao Hospital Universitário ou ao Nossa Senhora das Graças.
De todas as pessoas que conseguiram sair de suas casas a tempo ou com a ajuda de resgate, cerca de 7,5 mil foram abrigados em diversos pontos de acolhimento espalhados pela cidade. A medida que foram sendo lotados, a Secretaria de Assistência Social abria novos endereços e colocava à disposição. Em menos de duas horas, o Sindicato dos Metalúrgicos, o CSSGAPA e Centro Olímpico Municipal já não tinham mais espaço. O prédio 11 da Ulbra, que pode receber até 600 desabrigados, centraliza também as doações de colchões, agasalhos, produtos de higiene e limpeza.
Logo, a Ulbra vai lotar também. Os novos endereços de acolhimento estão atualizados neste link que blog confere três vezes ao dia.
Chega de fakes
Por fim, vale a lembrança: há muitas fake news sendo espalhadas na rede. A mais grave delas foi a de que a RGE teria religado a energia elétrica em áreas alagadas. Um sujeito fez um vídeo que acabou em uma página de virais nas redes sociais. Em seguida, tinha gente evitando por os barcos na água com medo de choques elétricos — e até um policial avisou sob o risco que, enfim, não existia.
Por essa e por outras, vale o aviso, sempre: alertas e avisos são afixados nas redes sociais e no site da Prefeitura de Canoas. Os veículos de comunicação, como nosso site, repercutem as informações oficiais e confirmadas. Em momentos de incerteza como esse, é o melhor caminho para não incorrer em fakes e falsas informações.
Cuidem-se.