Abertura do processo que pode levar à cassação do vice-prefeito precisa seguir, rigorosamente, as regras do Decreto-lei 201
É do tempo da Ditadura, do ‘prendo e arrebento’ e de quando a lei era o que o general dizia o Decreto-Lei 201, promulgado em 27 de fevereiro de 1967 por um ainda não muito belicoso Humberto Castello Branco. O necessário ‘ainda’ precede a informação de que, em 15 de março daquele mesmo ano, seria promulgada a Constituição Brasileira que dava poderes discricionários ao ocupante do Palácio do Planalto e garantia a legalidade formal do golpe que apeara João Goulart do poder em 1964. A partir dali, a ditadura posta perderia o acanhamento que vez ou outra demonstrava o deslocado Castello Branco para mergulhar o país, a partir especialmente de 1968 sob o comando de Arthur da Costa e Silva, em um regime vil e cruel de autoritarismo e desprezo pelas liberdades do indivíduo.
O Decreto-Lei 201 disciplinaria, a partir de 1967, a cassação dos mandatos de prefeitos, vereadores e dos vices – desde que denunciados por atos cometidos durante o exercício do cargo para os quais haviam sido eleitos como substitutos. Vale lembrar que até 1960, o vice era eleito de forma separada do titular; João Goulart, por exemplo, garantiu a vice-presidência da República numa eleição em que Jânio Quadros fora o eleito como presidente.
A regra antiga equiparava o processo ao do presidente da República – que em 1967 tinha o inigualável poder de fechar o Congresso, se quisesse. Imagina se o prefeito, diante de uma ameaça de cassação, pudesse simplesmente suspender as atividades da Câmara por tempo indeterminado e governar por decreto? Foi essa a urgência que levou Castello Branco a editar a medida, avalizada depois pelo Congresso, como determinava a Constituição à época. O general incluiu na regra, ainda, as cassações de vereadores e dos vice, quando denunciados por atos no exercício do governo.
É exatamente sobre um caso de vice denunciado que esse assunto toma conta da nossa pauta.
Em Canoas, a aprovação da abertura do processo de impeachment do vice-prefeito, Nedy de Vargas Marques, impõe alguns questões. Como será o processo? O rito? Como ele irá se defender? O que acontecerá daqui por diante? Quem será o vice se Nedy for cassado? Pode o processo ser interrompido pela Justiça?
É o que o blog tenta esclarecer, agora.
Do que se trata o pedido?
A denúncia feita pela eleitora Teresinha do Nascimento, ex-dirigente do PT, acusa o vice-prefeito, Nedy de Vargas Marques, de ter propositalmente atrasado o reequilíbrio financeiro do contrato de gestão do Hospital Universitário, o HU. O contrato foi firmado pelo município e a FUNAM, a Fundação Educacional Alto e Médio São Francisco e, no momento em que os fatos narrados aconteceram, estava sob intervenção judicial sob o comando da própria Prefeitura.
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O vem depois?
Uma vez apresentado na Câmara, o Decreto-Lei 201 prevê que seja lido na sessão seguinte ao protocolo na Casa. Essa etapa foi cumprida. A denúncia é aceita se a maioria dos vereadores concordar com o pedido.
Uma comissão processante precisa ser escolhida por sorteio, obrigatoriamente com três integrantes. O sorteio só é feito com os nomes dos vereadores que não declararem impedimento de participarem dos atos do processo – por serem parentes do acusado, por exemplo. No caso da processante contra Nedy, essa etapa também já foi cumprida: Márcio Freitas (Avante), como presidente, Jozir Patetta (PSD), como relator, e Eracildo Link (MDB), como membro, foram os sorteados.
O próximo passo: a notificação
Ainda segundo o que determina o Decreto-Lei 201, o passo seguinte é notificar o acusado de que a comissão processante está aberta e de que ele tem o prazo de 10 dias para uma defesa prévia, por escrito. Ele ainda pode requisitar a formação de provas e a oitiva de testemunhas até o limite de dez pessoas.
É a partir da notificação do acusado que o tempo da processante começa a correr: se todo o processo não for concluído em 90 dias, deve ser arquivado – sem prejuízo de uma nova denúncia sobre os mesmos termos, desde que comece do zero novamente.
Na tarde desta quinta-feira, 27, a comissão fez sua primeira reunião de trabalho. Depois disso, o documento de notificação será expedido e entregue ao vice-prefeito no paço municipal.
O processo anda: o amplo direito de defesa
Para cada ato da comissão processante, o acusado precisa ser intimado – pessoalmente ou pelo advogado devidamente constituído. É direto dele acompanhar as oitivas e diligências da comissão, se quiser.
Nedy ainda não se pronunciou sobre o caso, mas deve indicar pelo menos cinco testemunhas para depor. O atual secretário da Saúde, Aristeu Ismailow, a ex-procuradora do município Camila Buralde, o promotor de Justiça Marcelo Dossena, que também acompanhou o caso em nome do Ministério Público, o ex-secretário da Fazenda, Luis Davi, e a secretária de Saúde do Estado, Arita Bergmann. O próprio Nedy deve ser ouvido, inclusive.
Além disso, a comissão precisa ouvir a diretora-geral do HU, Ana Paula Macedo; a advogada Juceila Dall’Agnol de Lacerda, que trabalhou na Secretaria de Saúde do município, Camila Colvero, advogada da FUNAM e Daniel Cardozo, então chefe de gabinete do prefeito, que são as testemunhas de acusação.
A instrução e o relatório: hora da definição
Após as oitivas, a comissão prepara um relatório com as conclusões que chegou sobre o caso. É preciso justificar o encaminhamento a ser dado: o arquivamento do caso ou o pedido para que o plenário casse o mandato do vice.
Quando o relatório estiver pronto, uma cópia deve ser enviada à defesa do acusado para que seja aberto um prazo de 5 dias para uma defesa definitiva, por escrito.
É depois dessa etapa que um parecer final deve ser redigido concluindo pela procedência ou improcedência da acusação. Quando for protocolado na secretária da Câmara, caberá ao presidente da Casa, vereador Cris Moraes (PV), convocar uma sessão especial de julgamento para apreciação do caso.
A sessão que julga é única
A sessão que julgar a procedência ou improcedência da acusação deve ter pauta única e um rito especial. Qualquer vereador ou a defesa do vice-prefeito pode pedir a leitura de qualquer peça do processo e, em seguida, cada vereador poderá se manifestar por um tempo de até 15 minutos.
Ao final, o denunciado ou seu advogado tem o tempo de duas horas para sustentação de sua defesa oral.
A votação acontece de forma nominal – uma para cada denúncia formulada no pedido inicial. É considerado cassado o mandato do vice se a denúncia for julgada cabível por menos menos dois terços dos vereadores da Câmara, ou seja, 14 de 21. O resultado, cassando ou não, deve ser comunicado à Justiça Eleitoral e pode ser enviado, ainda, ao Minitério Público.
Se for cassado, além do mandato, Nedy fica inelegível pelo período de cinco anos, como determinam as penas para as infrações político-administrativas descritas no artigo 4º do Decreto-Lei 201.
E tudo pode, claro, parar no tapetão…
Uma ação judicial – ou várias – sempre podem surgir em meio a um processo como este. No entanto, a Justiça não costuma interferir no trabalho da Câmara, que é um poder independente. A única possibilidade de que uma revisão judicial é se algum dos ritos previstos no Decreto-Lei 201 não for fielmente seguido.
Não garantir o amplo direito de defesa, por exemplo, ou incorrer em um procedimento inadequado diante da regra.