BLOG DO RODRIGO BECKER

CANOAS | Uma verdade precisa emergir: políticos e servidores trabalham; a unidade e não o ‘nós sim, eles não’ é que está mantendo a cidade viva

Multidão de voluntários, entre eles servidores, se envolveram no resgate de atingidos pela enchente desde sábado, 4. Foto: Divulgação

Bastante se diz nas redes sociais que governo, políticos e servidores da prefeitura não estavam na linha de frente do combate à fúria das águas — não é o que eu vejo

Numa conta de alqueires, por cima, dá para dizer que Canoas recebeu mais de mil voluntários para o resgate de atingidos pela enchente no final de semana entre os bairros Rio Branco e Mathias Velho. Mais de mil, com certeza. Gente de todo o Estado e fora dele, com barco, Jet Sky ou vontade de ajudar. Pessoas que tiveram treinamento em resgate, pescadores amadores e profissionais, policiais e bombeiros aposentados. Policiais e bombeiros da ativa. Guardas municipais. Todos eles, aliás.

E muitos servidores municipais — ou seja, funcionários da Prefeitura de Canoas.

Acompanhei nas redes sociais uma injustiça sendo feita e embora não tenha procuração para defender ninguém, me senti no dever. Na cobertura de uma grande tragédia, os heróis anônimos são a força essencial que transforma vida em esperança. Ao retirarem milhares de pessoas de cima dos telhados e de dentro das águas por um momento a luz da humanidade parece superar as trevas da tragédia. E muitos destes heróis eram, também, funcionários públicos.

Digo isto por ter passado a segunda-feira, 6, inteira entre as zonas de resgate no Mathias Velho e no Fátima, na coletiva do prefeito no Centro e no verdadeiro ‘campo de refugiados’ em que se transformou o complexo da Ulbra, no bairro São José, ouvindo histórias sobre estes dias em que a vida parece de cabeça para baixo. Em todos esses lugares vi gente da prefeitura, da Câmara de Vereadores, os próprios vereadores e seus assessores, além de assessores do governo.

Dizer que não estavam lá é como dizer que não haviam tradicionalistas no resgate. Haviam — só não estavam de bombacha. Ou que não haviam gremistas ou colorados — certamente se apresentaram, mas não estavam fardados para um grenal valendo título. 

Quem não viu um dos vídeos do vereador Eric Douglas (União Brasil) cortando as águas do Mathias em busca de vizinhos desde a madrugada de sábado sem que ele próprio tenha conseguido salvar um único pertence da própria casa? Ou do vereador Patteta que, na segunda à tarde, no gabinete do prefeito, ainda usava a mesa camiseta polo vermelha sobre os ombros desde a sexta — todas as outras que tinha estão embaixo d’água no que até o dia 3 era o Mathias Velho que ele conhecia como ninguém.

E o que dizer daquele vídeo em que o vereador Emílio Neto (PT) se exaspera com moradores do Niterói tentando alertar que se o dique romper todos podem morrer afogados? Faz a gente lembrar do meme tão verdadeiro quando desconcertante ensinando que ‘todo filme de tragédia começa com um cientista sendo ignorado’… 

Falando em dique, repare no Niterói. O secretário de Obras Guido Bamberg adotou a causa como sua. Passa quase 20 horas por dia tentando o que dá para que não aconteça lá o que houve no Mathias. Já conseguiu bombas com a Casan — a Corsan de Santa Catarina — e até de São Paulo para retirar a água de dentro do bairro e se tiver chance, vai rezar para que a captação flutuante da Corsan no Rio Gravataí dê certo.

Além de colocar água em 80% da zona seca da cidade, o plano ajuda a diminuir a vazão e a cota do Rio na altura mais drástica do dique — o ‘filho adotivo’ do Guido Bamberg nestes dias turbulentos de calamidades cotidianas.

Não foram os únicos. O vereador Jonas Dalagna (PP) não tem um tênis seco desde sábado à tarde. Estava na área alagada atrás de vizinhos de sua família e desconhecidos que precisavam de ajuda. Gilson Oliveira (DC) e Márcio Freitas (PRD) também. Márcio montou inclusive um abrigo para receber quem perdeu tudo — outro trabalho a que se dedicam servidores de toda a natureza. Cris Moraes certamente perdeu as contas de quantos cachorros que já foram a parceria de alguém e agora dependem dele para ter o que comer, beber ou sobreviver — sim, muitos dos cães resgatados estão doentes ou machucados.

O vereador Mossini, que também não tem mais casa nem o escritório de advocacia no Mathias, queria no sábado de manhã cedo o contato da Rádio Gaúcha. Sentia que só um chamado estadual ou nacional poderia mobilizar voluntários suficientes para ajudar a salvar vidas em Canoas que ele via brotar sobre os telhados.

Vidas. Mesmo que me esforce, não consigo imaginar o peso de 63 mil pedidos de ajudar que chegaram nas primeiras 26 horas da tragédia, entre as 9h de sábado, 4, e 11h de domingo, 5, só no WhatsApp que o prefeito Jairo Jorge abriu para centralizar o atendimento aos que precisavam de resgate. No fundo, ser prefeito é assumir um compromisso tácito com quem depende do poder público e nada mais tem. Duvido que Aloízio Palmério Escobar, o prefeito nomeado de Canoas durante a enchente histórica de 1941, ou que Hugo Lagranha, que comandava a cidade no evento climático de 1966, não tenham sofrido genuinamente com o que houve por aqui. JJ não é sobrehumano, nem inferior a qualquer um de nós. E, repito a torcedores ou secadores da política de sempre, não arredou o pé um minuto sequer do gabinete de gestão da crise — só quando pessoalmente carregou sacos de areia para ganhar tempo no extravasamento do dique no Mathias, ou quando foi anunciar que chegara a hora das evacuações.

E os jornalista da Prefeitura que trabalham em regime de plantão desde a quinta-feira, 3, para garantir que as informações disparadas sejam as mais corretas possíveis e só recebem porrada nas redes? Imagina o que seria se não pudéssemos contar com o trabalho de retaguarda, não só de informação, mas de imagens? O mundo veria nossa enchente no escuro se não houvesse quem os informar?

Para não alongar este relato, queria lembrar da história de dois guardas municipais sobre quem já tinha grande apreço e agora devo uma reverência especial. Por não ter a autorização, prefiro preservar seus nomes. Estavam em casa quando a água chegou e conseguiram sair com a família e poucos pertences carregados às mãos. Perderam tudo, absolutamente tudo. Mas na manhã de sábado, mesmo de folga, estavam na beira da zona alagada novamente ajudando colegas e voluntários a buscar quem não teve a mesma sorte de sair a tempo.

Um deles terminou o sábado na UPA Boqueirão ardendo em febre: passou muito tempo dentro da água fria à noite, com os pés e botas encharcados demais para lhe preservar própria saúde. Mas no domingo, já medicado e melhor, voltou ao fronte — onde encontrou a colega lá, em pé, rendendo quem passou a madrugada na ativa.

Cumprimentei a cada um deles em seus postos de serviço na segunda-feira, 6. Estavam trabalhando como fazem há mais de década, com a máxima dignidade que um ser humano pode carregar no peito. Eles não merecem a injustiça de não serem reconhecidos como heróis e, no entanto, não reivindicavam nada. Estavam vivos. Fizeram o que estava ao seu alcance para ajudar. Para eles, não era heroísmo — era o que tinha de ser feito. Um senso de dever que nós como sociedade costumamos enaltecer nos bombeiros e resgatistas em geral, mas não valorizamos nos dois senhores que mantém a ordem na portaria da prefeitura ou na frente de uma escola, quando os vemos em fardas de guarda.

Aqui é preciso lembrar que união não combina com seletividade.

Foi de propósito que deixei esse relato por último. Na ansiedade de culpar alguém, escolhemos os políticos — especialmente os que estão mais perto, como é o caso de vereadores e do prefeito. A história julgará as responsabilidades de cada um, mas apontar o dedo antes pode ser precipitado e injusto. Quem torce ou seca pelo governo de plantão concorda ou condena na hora, mas o distanciamento do fato, nos próximos dias e semanas, mostrará que, no fundo, só contamos com a nossa comunidade para dar conta do longo processo de recuperação a que necessariamente estamos submetidos. Quando as águas baixarem e vão baixar, a Canoas que ficará contará com esses servidores, esses políticos, este governo e esta Câmara de Vereadores para erguer-se e lutar. Seremos os guerreiros necessários, a altura do que a História impôs à nossa geração, cada um ao seu jeito e no seu papel, dando o melhor que puder, ou seremos nada brigando para ver quem tem razão.

Não se trata de não cobrar, só acho que não é hora para dedos em riste.

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