Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado pelo UOL
Chega a ser espantoso. Mas a verdade é que parte da imprensa está responsabilizando Lula pela queda da Bolsa nesta quinta-feira. É chocante. O Ibovespa, que fechou em queda de 2,29%, aos 97.926 pontos, teria despencado com a reação do presidente à decisão do BC de manter a Selic em 13,75%. É um despropósito. O dólar fechou em alta de 1,01%, a R$ 5,29. O que o petista tem com isso? Rigorosamente nada!
Acontece que o Banco Central resolveu fazer a dança do acasalamento com a ortodoxia burra à beira do abismo. Muita gente estava achando engraçado esse papo de Lula reclamar dos juros altos, e o Banco Central posar de guardião da moeda, quando todo mundo sabe que a inflação está aí não vai coincidir com a meta impossível, a menos que se promova um recessão brutal. Juro deixou de ser remédio — e, para a doença que há, nunca foi — e passou a ser veneno.
“Ah, mas por que os mercados derreteriam com a manutenção da taxa de juros se eles mesmos apostavam unanimemente que seria essa a decisão?” Expliquei em “O É da Coisa”. É preciso voltar ao tempo do ginásio, da molecada meio arruaceira…
O espírito de arruaça
Sabem quando a gente se juntava para fazer alguma coisa que sabia errada, que deixaria os inspetores insatisfeitos, pelo puro prazer de atazanar? Pois é… Sempre tinha um bobalhão que resolvia exagerar na dose, não é? Animava-se tanto com a fuzarca que passava do ponto.
O Copom resolveu emitir um “comunicado” que é uma declaração de guerra ao governo, a Lula e ao bom senso. Mas não só! Também prometeu matar a economia se precisa para fazer valer o seu ponto de vista. “Uzmercaduz” pensavam assim: “Ah, vai mantar agora, para não dar o braço a torcer, mas vai acenar com um corte na próxima reunião”.
Não. Resolveram ser os idiotas da minha fábula infanto-adolescente; comportando-se como o sem-noção de limites, que acabava levando todos os colegas para a diretoria por exagerar na dose da afronta. Os bravos disseram, em outras palavras, que não haverá queda de juro tão cedo. Há quem entendeu que nem no ano que vem. E com uma ameaça: “se precisar, a gente aumenta”.
Quais são as maiores prejudicadas com os juros elevados e a perspectiva de que continuarão nas alturas? As empresas — muito especialmente as listadas em Bolsa. Isso quer dizer que a economia, que já está no buraco, vai afundar ainda mais; que o consumo, que já está ruim, vai piorar; que o baixo crescimento pode até nos levar para uma recessão.
O FED, nos EUA, com inflação de 6,5% (maior do que a nossa) e desemprego de 3,5% (por aqui, 8%), elevou a taxa em 0,25%. Mas, lá, a taxa segue negativa. E o que se viu? Em Nova York, S&P 500 subiu 0,3%, aos 3.949 pontos; Dow Jones avançou 0,23%, para 32.105 pontos, e Nasdaq ganhou 1,01%, aos 11.787 pontos. Uma beleza.
Os gênios daqui — com juros reais de 7%, previsão de crescimento de menos de 1% (segundo “Uzmercádus”), varejo abrindo o bico e indústria automobilística parada —, tiveram uma ideia: vamos manter tudo igual e ainda ameaçar com o aumento da dose do veneno. A Bolsa derreteu.
Culpa de Lula? Ah, não é mesmo.
Os Carcarás
Gostei da fala de Maurício Valadares, diretor de Investimento da Nau Capital, ao “Valor”: “O Copom foi bem duro, bem ‘hawkish’ com relação aos juros. Havia expectativa que pudesse sinalizar corte à frente, mas na verdade citou a possibilidade de retomar alta. Quando falamos em Selic podendo ficar nesse patamar por mais tempo que o previsto, a Bolsa é uma das primeiras classes a sofrer”. Pois é…
Ah, a palavra “hawkish” é espetacular nesse contexto: quer dizer “linha-dura”, “durão”, “inflexível”. Na origem é aquele que age à moda de um “hawk”, de um falcão. O falconídeo mais famoso do Brasil é o carcará, O da música de João Do Vale e Jose Cândido. É isso. Os valentes do BC se comportaram como os caracarás na terra queimada. E se não houver mais nem cobra queimada? Ah, eles vão comer os burregos. Com eles é assim: pega, mata e come. Lembro um trechinho da letra:
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
Quando chega o tempo da invernada
O sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Atribuir a responsabilidade a Lula pelo derretimento da Bolsa chega a ser indecente. Ao pé deste texto, vocês encontram o vídeo com o que disse o presidente sobre juros, desenvolvimento e crescimento. Nada que não tenha afirmado antes.
Abaixo, transcrevo a sua fala e retomo em seguida.
“Ninguém aguenta nesse país, a cada 45 dias, uma parte ficar defendendo a taxa de juros alta, e uma parte ficar criticando. Eu passei oito anos na Presidência, de 2003 a 2010, em que, em toda reunião do Copom, tinha alguém para fazer crítica ou ao aumento da taxa de juros ou à redução, e tinha gente para falar bem. É preciso a gente deixar que quem tem de cuidar das coisas cuide; cada um faz a crítica que quiser. Eu digo todo dia: não tem explicação, para nenhum ser humano do planeta Terra, a taxa de juros no Brasil estar a 13,75%. Não existe explicação. Então, veja, deixa eu lhe falar: eu, como presidente da República, não posso ficar discutindo cada relatório do Copom. Eu não posso. Que eles paguem o preço pelo que eles estão fazendo. A história julgará cada um de nós.
A única coisa que eu sei é que a economia precisa crescer. Nós precisamos gerar emprego. O emprego é a única coisa que garante tranquilidade e dignidade ao povo. Se seu pai trabalha, se sua mãe trabalha, se você trabalha, se todo mundo trabalha, todo mundo ganha um pouco, todo mundo consome um pouco, a economia volta a crescer. É esse país que eu quero construir. É esse país que nós vamos construir. É por isso que nós fizemos, nesses 80 e poucos dias de governo, a recuperação de todos os programas sociais que tiveram sucesso no meu período de governo. Todos os programas. Ontem, eu acabei de relançar o PAA [Programa de Aquisição de Alimentos] em Pernambuco.
Agora, quando nós formos anunciar o que aconteceu nos 100 dias, nós vamos, então, apresentar um outro programa de desenvolvimento para este país. Nós temos que fazer estrada, temos que fazer pontes, temos que fazer ferrovias, temos de cuidar do saneamento básico, temos de cuidar do tratamento da água, temos que cuidar da saúde, que cuidar da educação, tem tudo para fazer. Por que eu vou ficar brigando com os outros? Eu vou fazer. Eu fui eleito pra fazer, e eu vou fazer.
E, dentro deste fazer, está a gente preparar uma forte indústria de Defesa, para que a gente possa contribuir com a articulação das nossas Forças Armadas: quanto mais preparadas elas estiverem, mais elas vão cuidar da soberania nacional, cuidar das nossas fronteiras, cuidar do nosso espaço aéreo, vão cuidar das nossas florestas, das nossas riquezas minerais, do solo, do subsolo. Ou seja: é disso que o país precisa.
O país passou pelos quatro anos passados, uma xingação só. Todo mundo xingava todo mundo. Todo mundo levantava de manhã e apertava o botão do elevador. Se alguém apertava outro botão, já brigava. Se alguém fosse sair de carro, e alguém saísse na frente, já brigava. É preciso reverter esse país. Então eu vou fazer isso. É a minha missão. É quase que uma profissão de fé: provar que esse país vai voltar a ser um país em que o povo viva de cabeça erguida, feliz, brincando… Corintiano brincando com flamenguista, flamenguista brincando com vascaíno… Palmeirense perdendo do Corinthians, e ninguém achando ruim com ninguém (risos). É isso o que eu desejo e isso o que vai acontecer. E que a nossa Marinha esteja bem, que o nosso Exército esteja bem, que as Forças Armadas estejam bem, a nossa Força Aérea, e que o povo brasileiro esteja bem.”
Um jornalista indaga se o governo pensa numa ofensiva contra Campos Neto. Lula responde:
“Deixa eu lhe falar uma coisa: quem tem de cuidar do Campos Neto é o Senado que o indicou. Ele não foi eleito pelo povo. Ele não foi indicado pelo presidente. Ele foi indicado pelo Senado. Quando eu tinha o [Henrique] Meirelles, que era indicado meu, eu conversava com o Meirelles. Mas, agora, se esse cidadão quiser, nem precisa conversar comigo. Ele só tem de cumprir a lei que estabeleceu a autonomia do Banco Central. Ele precisa cuidar da política monetária, mas precisa cuidar também do emprego, precisa cuidar da inflação, precisa cuidar da renda do povo. É isso que tá na Lei. Basta ler a lei.”
Outro jornalista indaga:
“O senhor acha que ele está fazendo isso?”
Lula responde:
“Não está. Todo mundo sabe que ele não está fazendo. Se ele estivesse fazendo, eu não estava reclamando. Eu sou bobo de reclamar de uma coisa boa?”
O BC e o Senado
Que crítica fez Lula ao Banco Central que já não tivesse feito antes? A Bolsa teria caído por isso? Se ele repetir a dose nesta sexta, ela vai para 90 mil pontos? Tenham paciência! O índice despencou porque os mercados perceberam que o BC resolveu ser o carcará da historinha. Se preciso, come até os burregos…
Como se lê acima, o presidente afirmou que é o Senado que tem de se ocupar do BC. Ele próprio, Lula, não pode nem demitir os diretores nem definir taxa de juros. A “Autoridade Monetária” vai comer todos os burregos da economia real: da indústria, do varejo, dos serviços. O crédito já foi para o vinagre. A quem as entidades de classe, por exemplo, devem reclamar?
Ao governo? Ora, não decide nada nessa área. Tem de falar com o Banco Central e com Congresso, em especial com o Senado, o único que pode demitir diretores. Lula se limitou a lembrar a lei. E foi o que fez ao afirmar que a Lei Complementar 179, que garante a autonomia do BC, exige dos diretores que zelem pela moeda, mas também pelo emprego e pelo nível de atividade.
Não! Lula não disse nada de errado nem de novo, que os mercados já não conhecessem. Ao contrário: a fala é a de um governante preocupado com o crescimento do país.
Roberto Campos Neto e seus valentes fizeram a Bolsa derreter e o dólar subir. São os nossos carcarás. Comportaram-se como os bobalhões da turma. Assustaram até os coleguinhas.