Participei da cobertura do caso de estupro da Mariana Ferrer quando trabalhei na RBS/NSC em Santa Catarina. Lembro que passei um dia inteiro conversando com a mãe dela, que havia mudado com a filha para outro estado temendo represálias. As duas tinham medo em dar entrevista.
Consegui ouvi-las. Coloquei dois repórteres do Diário Catarinense na apuração. Dividíamos cada informação com a equipe da TV. Conseguimos vídeos dela sendo levada escada acima para uma sala “privada” (onde provavelmente foi drogada) e depois descendo, cambaleando, arrastada pelo suspeito. Também li mensagens de WhatsApp em que Mariana pedia socorro a amigas, minutos antes de ser estuprada.
Nosso esforço revelou ainda que após o estupro, em dezembro de 2018, Mariana foi até a delegacia, deu queixa e fez os exames necessários. Mas meses depois o sêmen coletado nela e no vestido que usava no dia da agressão não havia sido sequer periciado. Não esqueço da sensação de horror ao saber que ela guardava o vestido sujo de sangue e esperma em um saco plástico no roupeiro de casa. Doeu pensar que ao tentar preservar uma prova para não ser desacreditada, aquela jovem era novamente violentava a cada dia pós-crime ao ter que manter em seu quarto uma parte material da humilhação sofrida.
Assim como a investigação forense negligenciava a análise do sêmen, a Polícia Civil demonstrava não estar nem aí para a vítima. O até então suposto agressor não havia sequer sido chamado para prestar depoimento. Começamos a pressionar as autoridades. O Instituto Geral de Perícias foi questionado sobre o motivo da demora na análise do material e se o fato ofereceria prejuízo ao laudo final.
Foi um dia de muita sola de sapato gasta entre as redações do jornal e da TV. Reunimos todas as informações possíveis, imagens da casa noturna, prints de conversas por telefone e postagens em redes sociais. Sentei com o diretor de Jornais do grupo, com uma produtora, com a diretora de TV, com o repórter e o âncora do telejornal da noite (o RBS Notícia deles). Definimos a linha de abordagem e noticiamos o caso com o peso editorial que merecia frente sua gravidade.
Conseguimos tonar essa barbárie visível. O Ministério Público se manifestou e a delegada (pasmem, era uma mulher) responsável pelo caso se viu forçada a convocar coletiva para dar explicações e a enfim chamar o suspeito para depor. Porém, expor um estupro no Brasil é sempre delicado. É o momento em que a vítima se torna culpada. Mariana passou a ser violentada também nas redes sociais. Não faltaram depoimentos desabonando a jovem. Surgiram homens e mulheres, até amigas próximas dela, muitos a condenando por trabalhar em uma casa noturna. A opinião pública questionou cada fio de cabelo, até a virgindade da jovem pré-crime foi colocada em dúvida. Sim, porque na cabeça da "sociedade conservadora" não podia haver uma virgem de 21 anos. E se por ventura existisse, não tinha nada que trabalhar em danceteria.
Só havia passado um dia desde a nossa matéria de denúncia, mas a guerra de versões sobre a "honra" de Mariana já tinha contaminado algumas mentes brilhantes na empresa. Um dos chefões chamou os diretores de rádio, TV e jornal para revisar a história do começo. Ao melhor estilo "cidadão de bem pai de família", o figurão passou a se preocupar com a imagem da casa noturna – uma das mais badaladas e frequentadas por gente com muito dinheiro em Florianópolis – e do agressor. Ele ordenou amplo espaço aos (caros) advogados contratados pelos envolvidos a partir dali.
A violência sofrida por Mariana virou pé de página dentro de um "entenda o caso" na matéria do dia seguinte com os criminalistas. Com tal ato corporativo o figurão de cabelos grisalhos, conhecido por gabar-se pelos anos de experiência em empresas de comunicação no centro do país e que não fazia nada além de ler o jornal no dia seguinte, violentou Mariana e a redação, até ali tão engajada em causas sociais e justas.Infelizmente outros equívocos envolvendo o caso foram ordenados, contudo merecem cair no esquecimento.
Chafurdei nesse limbo com a dor de quem perdeu o encantamento pelo jornalismo que fazíamos em SC naquele dia. Também para mostrar que os absurdos vistos no julgamento de Mariana, e que o Brasil comenta desde ontem, não são poucos e nem os únicos. Em 15 de dezembro de 2018, uma jovem foi estuprada e desde então é violentada diariamente – por suas memórias, ao rever o tal vestido ensanguentado, pelas opiniões "embasadas" de "doutos" em redes sociais, pela negligência da polícia, pelo desprezo dos engravatados da mídia, pelo corporativismo econômico. O estupro da Justiça brasileira, personificado em Mariana, não tem chancela exclusiva da sociedade catarinense, apenas espelha o pensamento normativo de um país mergulhado em preconceitos, dogmas, tabus, machismo e falso moralismo.
Por entender, mas não ter condições de sentir com fidelidade a dor de uma vítima de violência sexual (lugar de fala), encerro com o desabafo das feministas Danielle Portela e Taiana Martins. E deixo o número 180, que recebe deúncias de todos os tipos de agressões contra mulheres no território nacional.
Mariana Ferrer tinha 21 anos e foi trabalhar como hostess (essas pessoas que dão boas-vindas aos convidados) numa casa de eventos muito famosa em Florianópolis.
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Acontece que um playboy colocou boa noite cinderela na bebida dela, a levou pra um mato no fundo da casa de eventos e estuprou Mariana que, inclusive, era virgem.
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Mariana pede ajuda, é socorrida vai pra delegacia fazer corpo delito. Encontram DNA do playboy na calcinha e dentro dela. Exame de sangue detectou droga boa noite cinderela.
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Mariana processa o playboy, que é filho de empresário muito rico da cidade.
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Mariana consegue grande repercussão nas redes sociais e começa a divulgar de forma ampla o caso.
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O playboy consegue através de seus advogados impedir Mariana de falar o nome dele nas redes sociais.
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O playboy consegue através de seus advogados que Mariana delete suas redes sociais.
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Julgamento.
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Primeira instância foi absolvido por FALTA de provas. (DNA nao bastou)
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O advogado do playboy usa fotos de Mariana nas redes socias para embasar o argumento de que foi não foi estupro e o sexo consentido.
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Segunda instância também foi absolvido. Moralmente, criou-se um entendimento que nem existe em lei: estupro culposo – quando não há intenção de estuprar.
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Vocês enxergam a qualidade de judiciário que esse país tem?
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Tô falando de um caso com provas, com DNA.
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Vou nem citar episódios em que o judiciário diz não ter provas mas ter convicção…
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Isso, meus caros e minhas caras amigas, é a institucionalização do estupro.
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NÓS NÃO ACEITAMOS ESSE VEREDICTO.
Danielle Portela
Taiana Martins