Era uma vez, numa pequena e feliz comunidade auto-sustentável, uma linda menina que ganhou de presente um capuz vermelho. A menina adorou o capuz, mas se apressou em dar uma declaração à imprensa dizendo que o vermelho, embora fosse uma bela cor que remetia a vários significados, inclusive políticos e esportivos, não deveria ser tomado como a sua cor preferencial. Disse também que, em outros momentos, estaria aberta a ter outros capuzes, de outras cores, e não necessariamente monocromáticos, desde que o acaso, ou outro presente, assim o permitisse.
Um dia, a mãe de Chapeuzinho Vermelho pediu a ela que levasse para a sua avó, que momentaneamente não gozava de plena saúde, uma refeição balanceada e de baixas calorias, feita com legumes e temperos frescos, e orgânicos, naturalmente, comprados numa feira de comércio justo.
Embora as residências fossem um pouco distantes, o gesto da mãe não deveria ser interpretado como exploração de trabalho infantil, dados os laços afetivos existentes entre as três mulheres das distintas gerações, e o aceite pronto e quase voluntário da menina. É preciso acrescentar que a mãe estava ciente de que o mau momento por que passava a saúde da sua progenitora não envolvia possibilidade de contágio, e portanto, não ofereceria qualquer risco à criança. Tampouco, deveria ser considerada omissão ou terceirização dos respectivos deveres por parte da mãe, já que esta tinha claro que uma missão como essa não só elevaria ainda mais o apego entre a neta e a avó, como também propiciaria à menina um pouco de atividade física de baixo-impacto, além de uma enriquecedora experiência de contato com a natureza que incentivaria sua autonomia.
De mais a mais, hoje em dia, todos temos a sorte de saber que uma das coisas que as pessoas bem sucedidas sempre souberam e nunca contaram, é que o contato simultâneo das crianças com a natureza preservada e a terceira idade incentiva uma postura de respeito e conservação tanto ambiental como humana, numa perspectiva de atuação construtiva e cidadã.
O pai de Chapeuzinho não foi consultado, já que, por esses percalços da vida amorosa, não morava com a mãe de Chapeuzinho, a quem pertencia a guarda da menina; e embora não mais se amassem como casal, a postura era de mútuo respeito. O pai estava com a pensão em dia, e visitava regular e pontualmente a filha, com quem passava fins-de-semana alternados dos quais ela muito desfrutava. O fim da relação dos pais deveu-se à opção homoerótica do pai, tendo ele assumido uma união estável com seu companheiro; por isso, as visitas à casa paterna permitiam à menina uma convivência com um leque de relações amorosas de maior diversidade.
O pai era músico profissional, se ocupava de oficinas de hip-hop na periferia que visavam a recuperação dos jovens através da produção cultural como uma estratégia preliminar do processo de reinserção no mercado de trabalho e na sociedade, além de também prestar consultoria na área de responsabilidade social corporativa. Tal situação, aliada ao fato do companheiro do pai atuar na organização Médicos sem Fronteiras, era fonte de ricas vivências para que a menina compreendesse a importância de uma visão globalizada da solidariedade.
Portanto, o fato do pai não ter sido consultado não deveria ser tomado como desautorização da legitima autoridade paterna, mas sim, como uma situação menor e que não feria as diretrizes básicas da educação acordadas junto ao juiz e as assistentes sociais quando da elaboração do fim da relação, e referendadas posteriormente na terapia de casal.
A senhora da melhor idade, avó da menina em questão, morava sozinha no outro lado de uma mata nativa tombada pelo IBAMA e preservada graças a uma ONG e à ação corajosa de grupos ecológicos. Embora o caminho não oferecesse perigo, a mãe da menina deu-lhe claras instruções sobre o roteiro a ser seguido até a casa da avó, alertando-a, e transmitindo de uma maneira serena, a confiança de que a filha saberia discernir sobre qualquer ameaça que porventura viesse a encontrar. E passando protetor solar fator 60 na menina, despediu-se afetuosamente antes de sair para uma reunião de um de seus grupos de trabalho voluntário.
Apesar disso, a menina seguiu por outro caminho, mais longo e tortuoso. Um raciocínio apressado poderia levar a pensar em oposicionismo à figura materna, mas também poderia ser considerada uma saudável tentativa de abrir novos caminhos, uma demonstração de curiosidade e confiança em si, necessárias para desbravar novos territórios, uma vez que, visando o desenvolvimento desses potenciais, Chapeuzinho freqüentava uma escola cuja proposta pedagógica moderna e diferenciada se baseava no estímulo do espírito crítico, da autonomia nas escolhas e da capacidade da criança de lidar com novos desafios e traçar estratégias para sua superação.
E assim aconteceu que, ao sair de uma curva do caminho imprevisto, Chapeuzinho se viu cara a cara com um lobo que, por ter nascido numa classe excluída e numa época anterior às ações afirmativas, cresceu num mundo sem cotas para lobos e, consequentemente, não teve muitas chances na vida, muito menos estímulo para estudar, e que além de estar desempregado, por descaminhos da vida, tinha o que se chama preconceituosamente de maus antecedentes criminais.
Apesar de ter sido alertada pelos pais, por diversos professores, pelos tios e pelas propagandas educativas para sua faixa etária para não falar com estranhos, de posse da consciência das aptidões e da inteligência emocional necessárias para lidar com um mundo cada vez mais competitivo e marcado pela mudança, Chapeuzinho ignorou essa abordagem conservadora e decidiu enfrentar o imprevisto de uma forma participativa e transparente, conforme aprendeu xeretando nos livros usados pela mãe no MBA, e por isso, foi logo se apresentando e falando com firmeza e desenvoltura dos seus planos de ir até a casa da avó.
Com aparente temor, o lobo se aproximou e, quase sussurrando, pediu que ela também falasse baixo, e contou que estava em liberdade condicional e que só tinha conseguido essa regalia depois da conversão ao vegetarianismo e à não-violência, na qual foi ajudado por um cão pastor que pregava junto ao serviço penitenciário. Disse também, que estava na floresta procurando morangos e amoras silvestres, e orgânicos, naturalmente, e que, se os outros membros da sua matilha que rondavam as vizinhanças sequer sonhassem que ele havia encontrado, sem comer, uma fonte tão nobre e abundante de proteína animal, seria descoberta finalmente a sua traição à ética grupal e, adeptos que eram da prática do jiu-jitsu e outras artes marciais com finalidades violentas, certamente lhe dariam uma surra exemplar antes do banimento definitivo para a cidade onde, como ela bem podia imaginar, a sua vida valeria menos do que um grão de carne de soja transgênica.
Com espírito solidário, Chapeuzinho se sensibilizou com a história do lobo e vislumbrou a possibilidade de haver convergência entre os seus caminhos e ações e os daquele lobo desamparado, e pensando nas possibilidades de ampliar o seu leque de projetos e de aperfeiçoar uma ação já em curso, convidou-o para ir até a casa da avó, onde eles poderiam se refugiar para continuar a conversa em segurança.
Quando lá chegaram, encontraram a avó que saía de casa aparentando a mais perfeita saúde, e diante da surpresa da menina, a senhora explicou que graças ao uso de homeopatia, reiki e doses massivas de pensamento positivo, havia despertado naquele dia sentindo-se plenamente recuperada, e por isso, havia decidido retomar suas atividades normais. Disse-lhes que se sentissem à vontade para usufruir da sua casa, mas que a desculpassem, pois tinha que sair imediatamente para não chegar atrasada ao encontro semanal do seu grupo de estudos na Universidade da Melhor Idade, no qual se dedicava à pesquisa das diferentes áreas do conhecimento que evidenciavam o Imaginário como um lugar entre-saberes que propicia um tecido-textura de transdisciplinaridade num pluralismo de abordagens ou, em linguagem mais simples, um politeísmo epistemológico pós-moderno num viés desconstrutivo.
Numa manifestação clara e inequívoca de abertura e flexibilidade do seu espírito empreendedor, Chapeuzinho encarou aquela mudança imprevista nos planos como uma oportunidade, e aceitou o convite da avó para ficar e conhecer melhor o seu novo amigo. Embora conversasse sempre utilizando um discurso do mais alto nível de correção, na sua inocência de menina, acabou fazendo referências ao tamanho incomum de certas partes anatômicas do lobo, como olhos, nariz, orelhas, boca etc., e esse rumo da conversa, especialmente a partir do etc., foi fazendo o lobo fraquejar, e vencido pelos baixos instintos provindos das camadas mais recônditas de seu DNA, esse produto de milhares de anos de seleção natural e que o condicionava a atitudes nem sempre adequadas, num ímpeto de agressividade não desejada e descontrolada, o lobo avançou sobre a menina numa atitude inamistosa e com objetivos não muito claros.
Um caçador, que por acaso passava por ali, presenciando a ação do lobo, julgando que se configurasse uma intenção clara de atentado contra a integridade física de uma menina indefesa, atirou com sua carabina numa área não vital do corpo do lobo, ligando em seguida para o 190 para chamar a polícia que, não só compareceu prontamente ao local, como encaminhou o lobo ao hospital penitenciário e deu voz de prisão ao caçador.
No seu depoimento à policia, o caçador alegou que tudo não passava de um lamentável mal-entendido, que havia utilizado uma arma que possuía apenas para fins decorativos em sua casa de campo, e que havia atirado no lobo apenas para evitar o que ele supunha que fosse uma eminente agressão à menina.
Representantes do Grupo de Defesa dos Direitos Lupinos alertando para o fato de que não houvera uma tentativa prévia de abordagem pacífica para verificar, através do diálogo, se realmente haveria uma agressão em curso, salientaram que o episódio reproduzia o que as estatísticas não paravam de apontar: a posse não responsável de armas de fogo era fonte de acidentes com danos irreparáveis para os envolvidos, ficando provado que, se a população estivesse desarmada, muita fatalidade seria evitada e essa história teria tido outro desfecho.
O caçador enfrentou um processo público por uso abusivo de força; a sociedade protetora dos animais o acusou de atentar contra uma espécie em extinção; e o IBAMA, descobrindo que o caçador não estava com a autorização para caça em dia, e que tampouco era temporada de caça, abriu um processo por tentativa de caça ilegal, além de ter aplicado as multas e demais sanções previstas no código florestal brasileiro.
Já os advogados do caçador, alegaram que ele foi traumatizado na infância por histórias infantis ameaçadoras, que sua conduta se atribuía a um automatismo defensivo, e solicitaram uma avaliação por uma equipe de psicólogos do GSVTCCFV, Grupo de Solidariedade às Vítimas de Traumas Causados por Contos de Fadas Violentos, especialistas nesse tipo de abuso. Atualmente, o caçador está freqüentando um grupo de ajuda mútua que apóia pessoas interessadas em abandonar a dependência das armas de fogo, e já está há seis meses em abstinência.
Chapeuzinho Vermelho fundou uma ONG que para a recuperação de lobos infratores e tem percorrido o país proferindo palestras nas quais, mediante módicas compensações financeiras para cobertura estrita das suas despesas, defende a implantação de um Sistema de Garantia de Direitos dos Predadores não Carnívoros para estimular a proteção integral desses animais como base para o seu crescimento e desenvolvimento como sujeitos críticos, empreendedores e cidadãos.
Recentemente, a garota recusou um convite para posar nua para um ensaio da Playboy, não sem antes avaliar cuidadosamente junto à sua consultoria de imagem, se não seria o caso de incorporar linguagens mediáticas mais pro-ativas à sua ação socialmente responsável, mas acabou concluindo que isso não passaria de uma efêmera e ridícula notoriedade que serviria apenas para alimentar o furor da sociedade patriarcal porco-chovinista em transformar as mulheres em meros objetos de consumo.
O lobo, depois de conseguir um habeas-corpus no STF de Brasília, escreveu o livro Quando o Lobo Chorou, com prefácio do Dr. Xiniaí Xique, no qual conta sua conversão total ao vegetarianismo graças ao apoio que recebeu da ONG de Chapeuzinho, bem como ao perdão de sua ex-vítima, fatos que ele reconhece como tendo sido determinantes do seu despertar para a importância da formação de novas gerações comprometidas com a preservação e melhoria das relações interespecíficas do planeta e que o levou a trabalhar como voluntário permanente em programas dessa natureza.
Sua mais recente aparição na mídia se deu quando veio a público para lamentar o fato de o cão pastor que tanto o ajudou na conversão ao vegetarianismo, ter sido flagrado e preso em companhia da esposa no aeroporto de Miami, onde o casal tentava entrar no país sem declarar 500 kg de picanha argentina escondidos em sacos de carne de soja; orgânica, naturalmente.
Moral da história: Chapeuzinhos do mundo uni-vos, não existe um caminho certo, o caminho se faz ao andar. Ouse, pois não tens nada a perder senão os grilhões da sociedade patriarcal machista.
Mario Corso vive em Porto Alegre, é psicanalista, publicou vários livros e é colaborador de Zero Hora. Para conhecer mais o seu trabalho, acesse o blog Psicanálise na Vida Cotidiana.