Estando no pé de uma jovem moça, na praia de Copacabana, eles seriam de marca, com estilo e muito caros.
No outdoor à beira da avenida movimentada, seriam estímulo à compra ou anúncio de tendência para o verão.
Na porta da casa, à espera dos pés de seu dono, transformar-se-iam em convite ao aconchego.
Sob a cama, ao lado de outro par, uma confissão de cumplicidade.
Mas não foi em nenhum desses lugares que os vi.
Os chinelinhos de tiras pretas estavam sustentando os pés de um menino magrinho, de bermuda, que corria pelo meio da rua. Era um dia de inverno, frio. Fora do ônibus onde eu estava, fazia uns cinco graus.
Eu senti vergonha das minhas meias. Foi o único que pude fazer, pelo menos naquele momento.
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Recuperei esse texto que escrevi há muito tempo para tentar traduzir o engasgo que tenho sentido diante de tantas notícias avassaladoras a que assisti. Rebeliões e mortes em presídios, oito homens que detêm a mesma riqueza que metade da população mundial, estupros coletivos, assassinatos, estelionatos, corrupção.
Tudo isso tem apenas uma causa: aquela criança que vi andando de chinelinho da rua em pleno inverno. Tantas diferenças sociais só podem terminar assim, mal. Esse é o sistema falido em que vivemos e que não podemos mais aceitar. Não podemos!
Para mudar isso, há apenas uma solução (é preciso dizer, é preciso gritar, é preciso que as pessoas entendam):
cuidar das crianças.
Não haverá mudança, nem redução da criminalidade, da corrupção e das diferenças enquanto ainda houver crianças que não têm oportunidade, que não têm acesso ao básico, que não têm uma meia para colocar no pé num dia de frio, que não têm família, que não têm amor.
Somos responsáveis por todas elas, não só pelos nossos filhos. O sentimento de comunidade e de coletividade deve nos acompanhar, não somente quando somos atingidos pelo crime ou pela roubalheira institucionalizada. Não há outro caminho.