Compartilhamos a necessária entrevista com o cientista político, doutor pela USP e co-fundador com Juliano Spyer do Observatório Evangélico, Vinicius do Valle, feita por Pedro Doria e publicada pelo Meio
Há um novo brasileiro na rua. Se antes a salvação católica servia de consolo para a dureza da vida, isto mudou. No mundo da Teologia da Prosperidade, ascensão social é mostra de bênção divina. Quem não a conquista é porque não foi abençoado. Quem não a conquista tem raiva. No mundo das redes, nos celulares, a propaganda é constante. E não é como aquela propaganda antiga, distante, das TVs e do rádio. É uma propaganda que se impõe, precisamente individualizada, que atiça aquilo que cada um deseja mais avidamente. Esse novo brasileiro quer prosperar com todas suas forças. Quase sempre, não consegue. E se ressente. É com ele que fala Pablo Marçal. É ele que a esquerda tradicional não consegue mais atingir.
“O mercado de trabalho tradicional está cada vez mais difícil, e as pessoas estão buscando alternativas fora dos métodos convencionais”, explica Vinicius do Valle, cientista político, doutor pela USP e co-fundador com Juliano Spyer do Observatório Evangélico. “É muito difícil fazer uma faculdade e, mesmo que faça, isso não quer dizer passe livre para ascensão social. O que mais vemos, mesmo na classe média escolarizada, são jovens pulando de trabalho intermitente em trabalho intermitente. Estão tendo menos filhos porque não têm tempo. Não dá para baixar a energia do mercado de trabalho para ter filho.” É com este público que Pablo fala.
Para esse pedaço da sociedade, Pablo Marçal não é um picareta. É um guru. Quase um pastor. Alguém que fala sua língua e, do jeito que fala, incentiva. Estimula, dá a energia para o crescimento nas portas que parecem existir: o aplicativo, ser influenciador, com sorte viralizar. Abrir um negócio de fazer algo em casa para vender nas redes. Aplicar para um curso online de autoajuda. É um mundo onde as bets seduzem. Onde até OnlyFans pode ser um caminho. O importante é crescer e escapar de onde está. Há um brasileiro novo que quer crescer, mas o país lhes vira as costas. Em geral, políticos tradicionais não o compreendem. Nem políticos tradicionais, nem as elites culturais.
“Quem está nas universidades, no jornalismo, não entende Pablo Marçal e o vê simplesmente como um picareta”, sugere Vinicius. “Mas ele não é isso. Ele é uma das figuras mais representativas desse mundo da internet e da nova dinâmica do trabalho.” Leia a seguir sua entrevista ao Meio, que também está disponível para assistir em vídeo.
Para quem o Pablo está falando?
Ele emerge de um mundo que é fruto da precarização do mercado de trabalho e de uma mudança religiosa no Brasil. Quem não está nesse mundo, quem está num ambiente mais tradicional, nas universidades, no jornalismo, não entende Pablo Marçal e o vê simplesmente como um picareta. Mas ele não é isso. Ele é uma das figuras mais representativas desse mundo da internet e da nova dinâmica do trabalho. É como se estivéssemos vendo Henry Ford surgir como candidato nos Estados Unidos no começo do século 20. As pessoas estão desesperadas por saídas. Não é à toa que as bets tomam conta de uma parte considerável da economia brasileira, que tantos tentem se tornar influenciadores, sonham em viralizar no TikTok ou no Instagram. Pablo dialoga com essa nova economia, mais intermitente, mais conectada, onde a formação necessária não vem das grandes universidades.
A esquerda, que ainda tem uma perspectiva marxista, enxerga o “empreendedor” como o patrão, o dono dos meios de produção. Mas o que significa ser empreendedor para essa nova classe média ascendente? Marçal usa muito essa palavra e ela obviamente ecoa.
Existem muitos níveis de empreendedorismo. Uma coisa é quem tem capital e está realmente abrindo um empreendimento que vai disputar mercado. Mas há um “empreendedorismo” que poderíamos colocar entre aspas, um jeito de as classes populares se virarem nesse mundo. E as classes médias também acabam assumindo esse papel, no sentido de representarem a si mesmas, de pensarem sua carreira como uma empresa, de construírem uma marca pessoal.
Nas classes populares, isso é vendido como uma ideologia: você é um empreendedor quando está inscrito em um aplicativo, quando sua remuneração depende exclusivamente de você, quando monta um pequeno negócio, vende um hot dog, um doce, ou cria um Instagram para anunciar algum produto que faz em casa. Estamos falando de precarização do trabalho. Algumas dessas pessoas acabam assumindo esse ethos de empreendedor, se vendo como empresas, estando à frente de um negócio que, às vezes, é apenas o trabalho delas. A pessoa se vê como empresária, mas não consegue crescer. Às vezes, tem raiva por não conseguir.
Mas em que isso é diferente da ascensão de uma burguesia como aconteceu nos séculos 18, 19 e 20 em tantos países do mundo? Isso não é, de certa forma, uma revolução burguesa? Pessoas que eram pobres, melhoram um pouco de vida e assumem uma postura de que devem trabalhar e crescer? O fenômeno não é o mesmo?
É uma boa pergunta, até porque a precarização do trabalho sempre existiu. Mas acho que há uma diferença: estamos passando por uma transformação religiosa no Brasil. A ideia de prosperidade está no centro da visão evangélica. Antes, se você estava em uma condição de pobreza, o foco, do ponto de vista religioso, era a salvação. As pessoas olhavam para si mesmas sem considerar a prosperidade material. Com a teologia da prosperidade, o quanto você possui é visto como reflexo de quão abençoado é, se está sendo fiel a Jesus. Se não tem prosperidade, algo está errado. Isso gera uma busca intensa pela prosperidade, uma pressa e uma raiva quando não ela chega na velocidade desejada.
Há outra diferença. Hoje, as pessoas estão imersas no universo da publicidade, já que estão no celular o tempo todo. Seus desejos estão sendo constantemente atiçados. Antes, a pessoa via uma propaganda ao ligar a TV, e essa propaganda não tinha muito a ver com seus gostos ou estilo de vida. Agora, a propaganda é muito direcionada. Se você gosta de carros, vai aparecer um carro que chama sua atenção; se você gosta de instrumentos musicais, uma guitarra que é o seu sonho. As pessoas são sugadas para esse mundo de consumo e mercadoria, e seus desejos são ativados constantemente. Os jovens, especialmente, não sabem como era antes. Para eles, isso é natural, e seus desejos são constantemente estimulados em todos os aplicativos que usam e em suas interações sociais.
Isso traz uma mudança significativa, pois gera um desejo de pressa na ascensão social. As pessoas não têm mais a paciência de entrar em um trabalho e planejar sua carreira ao longo de décadas. Elas querem resultados agora, e é aí que Pablo Marçal entra em cena.
Sua primeira afirmação é de que ele não é picareta no universo de onde vem. O motivo pelo qual muitos o veem como vigarista é a percepção de que é muito hábil com as palavras mas vende sonhos que é incapaz de entregar. Para o público dele, no entanto, que papel ele ocupa? Como se fosse um pastor? Está dando força, inspirando as pessoas a se moverem?
Em certo sentido, sim. Parte dos que o caracterizam como picareta o fazem por preconceito, porque ele não passou pelas instituições que legitimam o percurso de uma sociabilidade das classes médias altas e elites no Brasil. Ele vem de Goiânia, é evangélico. Fala de um jeito que é o oposto de uma linguagem acadêmica. Veja, não estou dizendo que ele nunca tenha cometido erro, mas existe também preconceito contra ele.
O que ele vende não é diferente do que encontramos em livros de autoajuda e vemos na maioria dos influenciadores das redes sociais. Vende sonhos, disciplina, a ideia de que, se você tiver a mentalidade certa, vai prosperar. É um exímio comunicador, mas seu estilo de comunicação é popular. Ele é muito rápido de raciocínio, dobra entrevistadores. E, claro, abusa do fair play que existe nos debates políticos. Ele interrompe os outros, e isso nos soa agressivo. Mas é muito comum na comunicação das classes populares. Não é percebido como problema por quem está dentro desse mundo.
Na entrevista que concedeu ao podcast Flow, ele cita clichês os mais banais. Não há ciência, nenhuma base para muitas de suas afirmações. Mas, ao entrevistador, bate como profundo. Como uma fonte de sabedoria. Isso é sinal de uma sociedade partida? Estamos falando duas línguas muito diferentes? Uma parte do Brasil se tornou incapaz de compreender a maneira de se comunicar da outra?
Não acho que nos tornamos incapazes de nos comunicar, mas as pontes de entendimento estão ficando mais estreitas. Por isso, os esforços de quem quer viver numa sociedade democrática devem ser direcionados para alargar essas pontes. A entrevista no Flow, de todas as exibições recentes dele, é onde dá para entender melhor o estilo de pensamento do Pablo e o que ele propõe, se é que dá para tirar algo concreto. O Igor (Coelho, âncora do podcast) iniciou com uma postura de considerar Pablo meio esquisito, talvez até desonesto, mas acaba sendo convencido ao longo da entrevista. O Pablo tem essa habilidade de prender a atenção com uma história, em geral tendo ele como personagem, sobre como ele foi habilidoso em determinado negócio. Não responde, mas conta uma história e prende a pessoa. Dá a impressão: “como ele é visionário!” Ele se vale do senso comum. Sabe aquela ideia do ditado popular? É isso. E, com essa linguagem, consegue inspirar pessoas por meio de chavões que refletem sabedoria popular. Ele se coloca como um pastor, como um guru.
Defina, no universo do Pablo, o que querem dizer direita e esquerda.
Quando ele fala de direita e esquerda, percebemos que sua visão é pouco estruturada. Ele elogia a política da China, o que é contraditório. Se propõe a construir casas populares, plantar milhões de árvores, o que poderia ser considerado uma política de esquerda. O discurso dele não é reacionário, como o do Bolsonaro. O que tem é um traço libertário, embora ao mesmo tempo fale de um Estado presente na vida das pessoas.
É uma figura confusa ideologicamente.
Exatamente. Ele é anti-esquerda no sentido de ser anti-coletivista, acreditando que o indivíduo, com uma mentalidade empreendedora, deve prosperar. Mas acredita em algum apoio do Estado. Não uma intervenção pesada, mas um suporte para o indivíduo se desenvolver. Ele mistura elementos de cristianismo, teologia da prosperidade e uma disciplina que remete a uma ética empresarial, onde cada pessoa é responsável por sua trajetória rumo à prosperidade.
Isso se reflete na forma como ele vê a sociedade?
Claro. Marçal acredita que é possível tirar pessoas da Cracolândia e transformá-las em empreendedores, ou tirar pessoas das ruas e fazê-las prosperar por conta própria. Ele quer transformar a sociedade em um conjunto de indivíduos buscando progresso material e ascensão social a partir de uma mentalidade correta.
Como você vê a comparação entre ele e Bolsonaro? Ele é menos radical?
Em certo sentido, se você for pegar o veio autoritário, sim. Mas ele está propondo uma colonização do Estado pelo mundo empresarial, o que é mais radical do que Bolsonaro. E, ainda assim, ele não se identifica completamente com o anarco-capitalismo de figuras como Javier Milei, pois Marçal está mais ligado ao mundo dos produtos digitais e da educação fora das instituições tradicionais. Ele fala para uma fatia de mercado que vê na internet e nos cursos online um caminho. Você não precisa fazer uma faculdade, faz um curso para cada habilidade que precisar ter para o mercado lhe dar atenção. É como falávamos. É o universo das bets, dos influenciadores, da economia da atenção. Até do OnlyFans.
Até OnlyFans?
Sim, porque plataformas como OnlyFans oferecem a jovens, especialmente mulheres, uma maneira de se sustentar e alcançar ascensão social, algo que muitos outros caminhos não oferecem mais. O mercado de trabalho tradicional está cada vez mais difícil, e as pessoas estão buscando alternativas fora dos métodos convencionais. Essa geração mais jovem vê os caminhos tradicionais fechados. É muito difícil fazer uma faculdade e, mesmo que faça, não quer dizer passe livre para ascensão social. O que mais vemos, mesmo na classe média escolarizada, são jovens pulando de trabalho intermitente em trabalho intermitente. Estão tendo menos filhos porque não têm tempo. Não dá para baixar a energia do mercado de trabalho para ter filho. Aquele caminho tradicional de vou estudar, entrar numa empresa, seguir carreira? É um universo cada vez mais restrito.
Para nós, que estamos dentro destes códigos tradicionais, que pensamos a partir desses códigos, olhamos e achamos que há algo de errado com Marçal. Ele só pode ser um grande picareta, não é? Para quem está fora, não. Para aqueles que não veem mais sentido em buscar ascensão por meios convencionais, ele oferece uma disciplina e um mindset que, para muitos, parecem ser o único caminho para algum tipo de sucesso. Ele dialoga com os sonhos dessas pessoas, oferecendo esperança onde muitos já a perderam.
O que acontece se a candidatura dele é cassada?
Quando entrevistamos pessoas das classes populares que flertam com esse tipo de política populista, percebemos que o sistema é visto como algo muito forte, que impede as pessoas que poderiam promover mudanças de chegar ao poder. Essa ideia de perseguição é extremamente eficaz para conquistar mais seguidores para esses líderes. É uma estratégia amplamente utilizada em vários contextos, especialmente dentro de igrejas evangélicas. A narrativa é de que “precisamos nos mobilizar para garantir nossa visão e nossa forma de vida”. Bolsonaro o usou esse discurso o tempo todo, e Marçal também o faz. Ele diz: “Os jornalistas vêm cinco, seis contra mim. Eu só apanho.” Mas a mensagem é que o sistema não quer permitir que ele faça a mudança que as pessoas precisam.
Não adianta simplesmente tentar retirar os direitos políticos de cada líder populista que surge. O problema é mais profundo. Precisamos estabelecer pontes para dialogar com as pessoas. O ideal seria que essas candidaturas, que representam ameaças democráticas e não apresentam propostas concretas, não tivessem o apelo popular que têm. Não adianta apenas tentar controlar essas lideranças e achar que o problema está resolvido se ainda existe um anseio popular.
Isso não significa que qualquer crime possa ser cometido sem punição. Não é isso. Mas é preciso que a punição seja proporcional. Por exemplo, Guilherme Boulos fez um ato com Lula que funcionou como uma campanha antecipada. O TSE aplicou uma multa, o que foi a medida correta. Da mesma forma, Pablo Marçal deve receber uma punição proporcional. Cassar a candidatura de alguém deveria ser uma medida extremamente rara.