Existe um lugar onde Gravataí não para. Divididas em três turnos, pelo menos cinco mil pessoas passam a maior parte dos seus dias entre máquinas, produzindo, segundo estimativa da Prefeitura de Gravataí, pelo menos 11% do ICMS, 20% do ISS e 4,5% do total da receita planejada para 2018. No Distrito Industrial, estão atualmente 48 empresas ativas, que dividem a área atual de 301 hectares que um dia já foi um dos bolsões da produção rural local. Faz 45 anos que os tambos de leite aos poucos foram dando lugar ao maquinário pesado da indústria, sobretudo a metal-mecânica, que acabou se consolidando como a vocação de Gravataí. O distrito surgiu ao lado, e concomitantemente, do surgimento da rodovia Osório-Porto Alegre, a Freeway, que deu nova dinâmica à logística de toda a região.
— Esse aqui é o coração, de verdade, da cidade. Sem o distrito, Gravataí não teria se desenvolvido e não teríamos tantos jovens com qualificação para trabalhar aqui e fora daqui. Eu sempre tento mostrar para essa gurizada o quanto isso que se fez aqui é importante para a nossa cidade — valoriza Vilson Eduardo da Silva, 79 anos, morador de Gravataí e atuando na Rauter Química, a pioneira do Distrito, há 43 anos.
Diariamente, pelo menos 40 ônibus, micro-ônibus e vans levam e trazem os trabalhadores a cada turno. Uma empresa como a Panatlântica, que produz aços planos, movimenta, entre entradas e saídas de material diário, em torno de 1,2 mil toneladas de metal. A Mundial, com 52 hectares na unidade, ocupa o maior espaço para a produção neste complexo. Na Dana, que emprega 1,2 mil pessoas em Gravataí, há o maior fluxo de funcionários no Distrito entre as cinco unidades de produção de peças e componentes mecânicos na mesma área.
O operador de empilhadeira Israel de Oliveira Fraga, 40 anos, acorda todos os dias às 5h30min para entrar no seu turno, às 7h, na Dana. Faz 14 anos que o morador do bairro Central está na empresa. Ele faz pelo menos 50 viagens com a empilhadeira, entre um pavilhão e outro, no intervalo de apenas um turno. Para se ter uma ideia, o Israel executa em um turno mais da metade das 80 viagens diárias que a Sogil faz de Gravataí para Porto Alegre.
Para atender a esta logística, pelo menos 200 caminhões transitam pelas ruas do distrito a cada dia. A tendência, pelo menos na expectativa do setor, é de que este número cresça com uma retomada do aquecimento da economia.
— Neste ano as coisas voltaram a melhorar aos poucos. Ainda não dá para se dizer que retomamos o ritmo que já tivemos, mas a perspectiva é positiva a partir de agora — diz o encarregado da empresa transportadora Irapuru, Diego Helfer, que é catarinense, morador de Cachoeirinha, e há nove anos trabalha no Distrito Industrial.
Se o setor metal-mecânico foi atingido em cheio pela recessão, o de transportes é quem acusa o golpe primeiro. Do portão da Irapuru, onde estão empregadas 100 pessoas, faz nove anos que o aposentado Valdir Jacobe, 63 anos, tem o seu próprio termômetro do ritmo da economia do Distrito. Diariamente, ele estaciona o seu carro ali e vende lanches e café. Não tem exatamente uma estatística do que costuma sair mais entre os seus produtos. Sabe que o café preto é o líder na procura, agora um pouco melhor.
— Há uns dois anos, chegou a ter semana em que só parou um ou dois caminhões aqui. Coisa bem triste mesmo. Nesses últimos meses voltou a ter um pouco mais de vida por aqui — comenta.
A estimativa é de que atualmente mais de 20 viagens partem por dia da transportadora.
Entre um acidente e uma estrada que nascia
Um acidente foi o responsável pela decisão de instalar a primeira indústria no que viria a ser o Distrito Industrial de Gravataí, em 1973. Ronald Rauter, um dos líderes da Rauter Indústrias Químicas, foi atingido nos olhos pela mangueira de um carro tanque de álcool anidro que estourou próxima do seu rosto. Em uma época em que o uso de equipamentos de proteção não era comum, ele temeu pelo pior. E se um acidente de proporções maiores acontecesse?
Até então, a empresa criada em 1947 funcionava com a fabricação de produtos químicos na esquina da Rua Ceará, com a Avenida Cairu, em uma região que se transformava em área de habitação intensa, na zona norte de Porto Alegre. Uma fábrica, envolvendo os riscos que a produção química envolve, já era vista com desconfiança pela vizinhança.
— Meu pai e o meu tio foram atrás de áreas que pudessem servir para a instalação da fábrica. Em Gravataí, se falava do projeto para a construção da Freeway. Eles foram atrás — conta Ricardo Rauter, 53 anos, um dos atuais diretores da empresa.
O lugar escolhido era vizinho da área demarcada para a rodovia. Era uma aposta, além da distância de áreas residenciais, na realidade logística que seria criada. Desde o final dos anos 1950, Gravataí inovava para industrializar-se. Foi aprovada na Câmara de Vereadores a lei que determinava a doação pelo município de terras a quem quisesse instalar indústrias por aqui. A medida incentivou o primeiro boom industrial, junto às RSs 020 e 030. Em 1958, instalou-se a Riopel. Dois anos depois, a Trafo e, em 1962, as gigantes Synteko e Icotron (atual TDK). A Icotron, inclusive, foi a primeira a apostar na saída de Porto Alegre para Gravataí.
Mas a Rauter não foi beneficiada por esta medida. O terreno escolhido era particular, e foi comprado. Ao chegar ali, os Rauter depararam com algo inusitado no momento de pensar em industrialização.
— Tinha uma horta, muitas plantações e, bem do lado, um tambo de leite. Lembro de chegarmos no terreno de trator e carroça. Os primeiros anos foram muito difíceis. Para trazer os caminhões que carregavam e descarregavam, era preciso um trator para puxar — conta Ricardo.
Em 1973, quando os Rauter fincaram pé no que viria a ser o Distrito Industrial, a criação de um bairro só com indústrias na cidade já não era novidade — ao menos nos gabinetes. Foi neste ano que o decreto 22.592 do município ordenou a desapropriação da área que viria a ser o Distrito Industrial.
Sete anos antes, um folheto, em inglês, foi distribuído pela Secretaria Estadual da Indústria e Comércio aos participantes de um seminário internacional de investidores, em Porto Alegre, mostrando um mapa com Gravataí, Santa Maria e Rio Grande. Eram três dos cinco pólos que o governo estadual projetava transformar em distritos industriais, como parte do Plano Nacional de Desenvolvimento durante o chamado “milagre econômico”. Somente em 1975, no entanto, quando a Freeway já era uma realidade e a Rauter e produzia no novo terreno, a migração das indústrias do setor metal-mecânico, como era a meta da Companhia de Desenvolvimento Industrial e Comercial do Estado (Cedic), se concretizou. E deu briga.
— Era um decreto que previa a desapropriação de áreas para instalar um pólo metal-mecânico, e nós não nos enquadrávamos, segundo o governo, neste ideal. Tentaram a desapropriação e fomos à via judicial garantir o nosso direito. Vencemos — recorda Ricardo Rauter.
A lembrança daquela disputa, que depois de superada resultou na absorção da Rauter pelo Distrito Industrial, está escrita na parede da empresa, como um aviso, bem visível para quem chega: “Deus conosco”.
: Governador Sinval Guazzelli veio à fábrica da Panatlântica inaugurar o Distrito | foto PANATLÂNTICA
A "carta de Nely"
O Reni Porcher Peterson, 62 anos, chegou em Gravataí junto com a Dana, em 1979. Vindo de Porto Alegre, depois de um ano encarando a dificuldade que era chegar ao recém criado distrito, ele resolveu vir de mala e cuia para a cidade. Adotou o bairro desde então. Na fábrica, ele é mecânico de manutenção. Todas a vez que dá algum problema nos equipamentos, chama o Reni e a equipe dele. Ao longo dos últimos 40 anos, ele perdeu as contas de quantas pessoas ele já ensinou.
— Logo que a fábrica chegou, era uma dificuldade ter operários que já conhecessem como era o trabalho. Como era uma cidade com as indústrias surgindo, atraiu muita gente atrás de emprego. Vinham muitos do Interior, ou da zona rural aqui de Gravataí mesmo. Eu ensinava todos eles no dia a dia. Isso me dá muito orgulho, porque eu vi e ajudei a transformar uma cidade — comenta o mecânico.
Sabe a história da carta de Pero Vaz de Caminha ao descrever o Brasil, contando à coroa portuguesa que “aqui nessa terra, tudo o que se planta nasce, cresce e floresce”? Pois, em 1973, Gravataí já tinha algumas indústrias. Mas um relatório daquele ano, feito pela geógrafa Nely Blauth, da Ufrgs, sobre Gravataí, antecedendo a criação do Distrito Industrial, espantaria a “coroa”: “Oferece poucas condições para instalação de indústrias. A falta de preparo de mão de obra, ausência de matérias-primas, exceto o leite, comunicações escassas fornecimento de água insuficiente, ruas dos bairros e estradas de comunicações internas em precárias condições de tráfego, mercado consumidor distante”.
Esse cenário é bem vivo na memória de Ricardo Rauter, que desbravava a área para a indústria com o pai:
— Para fazer uma ligação telefônica, precisava ir até o centro, na central telefônica. Era lá que o pai tratava de todas as vendas e acertava com compradores e fornecedores. Rede elétrica, não tinha, era um gerador, e água, só com o poço aberto por eles para instalar a fábrica. Quando o distrito foi concretizado, melhoraram um pouco das coisas. Foram cinco anos nessas condições.
Quem acompanhou essa história do ponto de vista de quem recebia as novas indústrias foi José Antonio Vargas. Ele hoje é diretor superintendente da Panatlântica. Gravataiense, entrou na empresa como auxiliar de cobrança em julho de 1977. Meses depois, aconteceu a cerimônia de inauguração oficial do Distrito Industrial, com o governador Sinval Guazzeli, o ministro Ângelo Calmon de Sá e o secretário estadual de Indústria e Comércio, Cláudio Strassburger.
— Meu crescimento profissional todo foi aqui dentro. Em janeiro de 1977, quando eu trabalhava no Banco Sul-Brasileiro, entreguei um currículo aqui com aquele sentimento que toda a cidade tinha na época, de que aqui estava o futuro, estavam os empregos. Aqui na cidade, havia até a dispensa do serviço militar para garantir mais mão-de-obra. Naquela época, para a indústria, tínhamos o pessoal que trabalhava na Icotron, na Synteko e o que vinha de Porto Alegre — conta.
Junto com a Panatlântica, que teve sua chegada formalizada em 1975, outras 10 empresas vindas de Porto Alegre se transferiram para o Distrito — Albarus (atual Dana), Artemp Ar Condicionado, Gildemeister Máquinas Operatrizes, Luiz A. Rauter (atual Rauter Produtos Químicos), Jackwal, Schubert-Salzer Máquinas Têxteis, Semag, Wallig Sul, Wotan e Zivi (atual Mundial). A Digicon Perto, no mesmo período, foi criada dentro do Distrito. Um novo ciclo de chegada de indústrias aconteceu em meados da década de 1980, com as chegadas de empresas como a Moore, da Cervejaria Kaiser e da Carlos Becker Metalúrgica Industrial. Já no século XXI, a Fitesa instalou-se na cidade. Atualmente, são 48 empresas ativas dentro do Distrito Industrial.
O Reni, literalmente, viveu empresas que chegaram, cresceram, fecharam ou prosperaram. E, depois de virar um gravataiense por adoção, trouxe a família para dentro do Distrito. São dois filhos trabalhando na Dana. Um deles já está há 15 anos na empresa, atuando como analista de peças. O outro, há cinco anos trabalhando como operador de máquina.
Tecnologia made in Gravataí
Entre as indústrias escolhidas para ocupar o Distrito industrial estava a Wotan, empresa de origem alemã, que vinha de Porto Alegre. A planta em Gravataí produziria máquinas operatrizes, mas os alemães não produziam a automação para aqueles equipamentos. E ali, em 1977, quando encontrar funcionários locais que já dominassem a atividade industrial mais básica ainda era uma tarefa árdua, surgia a Digicon, a primeira indústria de alta tecnologia genuinamente gravataiense.
Sabe a história de Steve Jobs e do império que nasceu na garagem? Pois o canadense Joseph Elbling, que trabalhava na Wotan e ja havia rodado o mundo semrpe se aperfeiçoando em tecnologias nas quais o Brasil aida engatinhava, tomou a iniciativa de desenvolver os sistemas de medição de alta precisão para o maquinário produzido pela empresa alemã. Mas não foi na garagem, tampouco em um quintal.
— Tudo começou co o aluguel de um dos banheiros e um dos vestiários da Wotan — lembra José Luis Korman, 63 anos, hoje diretor da Digicon, mas em 1978, aos 23 anos, ele foi o primeiro engenheiro contratado por Elbling.
Diariamente, Korman fazia uma verdadeira peregrinação de Porto Alegre até a empresa recém criada.
— As dificuldades de locomoção eram muito grandes, porque não tinha transporte para trazer até este ponto do Distrito. Eu caminhava uns 40 minutos para chegar na minha carona, com um colega que também segue até hoje na empresa, e vínhamos. Se precisava de uma consulta ou qualquer coisa no centro de Gravataí, precisava caminhar até lá fora do distrito e pedir carona — recorda.
: Tecnologia usada em bilhetagem e acessos é desenvolvida em Gravataí | foto DIVULGAÇÃO DIGICON
Durante muito tempo, a Wotan foi a única cliente da Digicon, mas a alta tecnologia era a grande deficiência do crescimento planejado naquele momento para a indústria brasileira. Logo, a empresa de Gravataí aproveitou as oportunidades. Sob as condições de isenção para quem se instalasse no Distrito, foi adquirido o atual terreno do prédio principal da empresa, ao lado da Wotan. Logo, passou a ser desenvolvida a tecnologia para dispensadores de cédulas nos chamados caixa-eletrônicos, também inovadora no país. Surgiu a Perto, dentro da planta da Digicon.
A presença de uma empresa como esta atraiu outras do setor tecnológico. A Edisa instalou-se em Gravataí, mas não durou muito tempo. No final da década de 1990, o Grupo Digicon comprou o terreno onde ficava esta empresa, e aí, sim, a Perto pode se expandir para a fabricação do equipamento inteiro aos caixas.
Passados 40 anos da empresa no banheiro, o grupo especializou-se na produção de outros produtos tecnológicos, como controladores de acesso, de tráfego, sistemas de bilhetagem até a participação em projetos aeronáuticos civis e militares, além de componentes de satélites brasileiros.
Onde se prepara o futuro da indústria
A rotina do Dionatha Ribeiro de Lara, 18 anos, é intensa. Morador do Parque dos Anjos, o estudante do nono ano do Ensino Fundamental, cursa mecânica de manutenção de máquinas industriais durante toda a semana no Senai de Gravataí. Aos sábados, ele faz o curso de programador CNC que, em outras palavras, é o domínio do sistema informatizado de controle das máquinas industriais que ele opera manualmente durante a semana. A busca pelo conhecimento integral deste sistema tem muma explicação. Dionatha quer trabalhar na indústria e em Gravataí, como o padrinho, a tia e até a namorada, todos moradores da cidade, já fazem.
— Eu sempre gostei de mexer nas máquinas, de entender como funciona. Acho que é uma carreira legal para seguir — diz o estudante.
Dionatha é o retrato da mudança de perfil da cidade nestes últimos 45 anos. De um lugar que, a muito custo, fornecia mão de obra dependente de qualificação de todas as formas, hoje, 80% dos trabalhadores do Distrito Industrial são moradores de Gravataí, Cachoeirinha ou Glorinha. Uma das chaves para esta mudança está justamente no Senai. A instalação de uma unidade em Gravataí já era prevista desde a criação do Distrito, mas ela só se concretizou 30 anos atrás. E a procura, mesmo em tempos de crise, é sempre muito grande. Hoje, são 1.200 alunos.
— As turmas até diminuíram um pouco no pior momento da crise, mas foi também o período em que vimos maior procura por qualificação, não apenas pelo aprendizado industrial mais básico. É no momento de crise que este conhecimento faz a diferença — explica o coordenador de educação profissional do Senai, Diego Quoos.
A estimativa é de que mais de 85% dos formandos no Senai são absorvidos pela indústria. E pelo menos oito em cada dez encontram trabalho em Gravataí mesmo. Não é à toa. A definição dos cursos a serem oferecidos na unidade sempre passa por uma avaliação do comitê técnico sdetorial local, que conta com representantes das indústrias do Distrito. É dali, e da procura pelos cursos, que é possivel tirar a melhor impresssão sobre o futuro do Distrito Industrial.
— O curso de mecânica é sempre o mais procurado, mas temos notado um interesse cada vez maior na área de mecatrônica, que é o futuro realmente deste setor. A chegada da tecnologia na produção é uma realidade que tende a ser ainda mais ampliada — aponta.
Outro bom sinal que vem do Senai está no perfil dos que cursam ali. A maior parte dos alunos faz parte da aprendizagem industrial, pelo projeto Jovem Aprendiz, direcionado a jovens de 14 a 24 anos na aprendizagem industrial. Em geral, eles já saem dos cursos no Senai com o estágio garantido em alguma indústria local.
— Eu sempre digo a quem está chegando na empresa o quanto é importante pensar em crescer aqui dentro e nunca parar de se qualificar. Lembro sempre do meu próprio caso e de outros colegas daquelas primeiras turmas de moradores de Gravataí que entraram para a indústria no distrito — diz o diretor superintendente da Pantlântica, José Antonio Vargas, que também é presidente do concelho consultivo do Senai em Gravataí.
O incentivo geralmente está nas histórias contadas dentro de cada uma das empresas do Distrito Industrial. Como o caso do atual diretor da unidade da Perto na Índia.
— Ele chegou na nossa empresa com 18 anos, contratado por mim como estagiário. Tinha, na época somente um curso técnico no Senai. Hoje, tem Harvard — valoriza o diretor do Grupo Digicon, José Luis Korman.
É pensando neste futuro que diariamente os colegas Gean Carlos Bizarro, 17 anos, Gabriel Felten Freitas, também de 17, e Cristian Peres Correia, 15, seguem de bicicleta para as aulas de mcânica.
Eles fazem parte do Jovem Aprendiz. De acordo com Quoos, outra parcela dos inscritos faz parte dos cursos técnicos independentes e, sobretudo no turno da noite, há os alunos de qualificação industrial que, em geral, estão ali buscando a melhoria dentro da própria empresa.
: Maior parte dos alunos do Senai é formada por jovens aprendizes | foto GUILHERME KLAMT
Aqui, Gravataí não dorme
Enquanto a cidade descansa, a Catarina Ivanete de Souza produz. E as máquinas não param. Só na Dana, onde ela faz parte do período noturno de produção, pelo menos 120 funcionários atuam das 22h até às 7h do dia seguinte. Parece puxado? Não para quem já é acostumado com a rotina das indústrias.
— As pessoas sempre imaginam que é diferente por ser de madrugada, mas fazemos as mesmas coisas que se faz durante o dia. O horário é que muda — brinca a operadora de máquinas.
Não são todas as fábricas que mantêm o terceiro turno. No caso da Dana, 10% dos funcionários operam neste horário.
Catarina chegou há 23 anos em Gravataí, vinda de Tunas, no Noroeste do Estado, e criou a família na Morada do vale III. Faz 21 anos que trabalha na Dana.
— Minha irmã já trabalhava aqui e era isso o que eu queria. Se não fosse o Distrito, acho que Gravataí não seria o que é hoje. Não teríamos tantos empregos e oportunidades — diz.
A filha dela deve seguir o mesmo caminho. Todas as tardes, Catarina leva e busca a menina das aulas no Senai. Entre essa ida e vinda, aproveita para dormir, enquanto toda a cidade funciona a pleno.
Esperança no novo efeito GM
A industrialização de Gravataí tem, no seu histórico, o pioneirismo local em conceder incentivos fiscais aos empreendedores. Desde os anos 1950, havia a constatação de que o município precisava mudar o seu perfil econômico para dar conta do que começava a se configurar como uma metrópole.
O símbolo mais atual das políticas de incentivos à indústria é o complexo automotivo.
Mas, após o anúncio da ampliação da planta, ao menos o governo municipal não projeta fomentar ações para alavancar mais indústrias na cidade. A aposta para recuperar a economia é na onda que a própria montadora deve gerar.
De acordo com a secretária municipal de Desenvolvimento, Luana Krumberg, há diversos pedidos de viabilidade para novos investimentos na área do Distrito. Ela não revela quais empresas estariam interessadas em vir para a região, mas antecipa que são indústrias de porte médio e grande.
— É um pouco resultado do anúncio de ampliação da GM, que deve movimentar toda a economia da cidade e atrair novos investimentos — aponta.
É que o período é de dúvida completa no setor. Se há esperança da indústria na retomada do crescimento da economia, o Distrito Industrial de Gravataí ainda lambe as feridas do fechamento de diversas plantas.
Entre elas, pelo menos uma das gigantes da área, a Cervejaria Kaiser, que mantém funcionários no local, mas parou a produção.
Para o diretor superintendente da Panatlântica, José Antonio Vargas, ter uma região como o Distrito Industrial, ainda com áreas potenciais para a ocupação, é um trunfo para Gravataí.
— Em qual outro lugar a indústria encontra uma região con espaço disponível e sem o risco de se tornar um incômodo à vizinhança? É uma área privilegiada em logística também. Sem dúvida, Gravataí pode se beneficiar com o reaquecimento da economia — aponta.
: Mesmo sem novos incentivos, governo aposta no desenvolvimento da indústria local | foto DANA
As pedras no caminho
Toda vez que um visitante estrangeiro chega ao Distrito Industrial, o engenheiro José Luis Korman repara o constrangimento. Alguns deles, não se limitam a observar. Perguntam:
— Mas por que esses buracos, essa grama alta? E essas indústrias abandonadas dessa forma?
Korman, diretor da Digicon, fala com autoridade no assunto. Convive no Distrito há 40 anos.
— Mesmo com toda a contribuição que damos ao município, seja em impostos ou na qualificação do tabalhador, temos muitos engenheiros aqui, o distrito está meio abandonado pelo poder público. É responsabilidade do município capinar, manter limpas as ruas e a pavimentação em bom estado. Nada disso é feito como deveria. Me sinto envergonhado toda a vez que recebemos pessoas do mundo inteiro aqui — lamenta.
Se o fechamento de grandes indústrias, como a antiga planta da Wotan, vizinha da Digicon, é o retrato da recessão histórica que o país ainda não superou, para Korman, o abandono ultrapassa os portões daquelas fábricas.
— Claro que a recessão pegou boa parte do setor industrial em cheio, mas será que se tivéssemos uma infra-estrutura mais adequada, como a pavimentação adequada ao fluxo de caminhões que temos, não teríamos uma forma de atração um pouco melhor para novos investimentos?
A partir da década de 1990, a responsabilidade pela infra-estrutura do Distrito Industrial deixou de ser uma atribuição da Cedic e passou à administração municipal. Passados quase 30 anos, os sinais do tempo são sentidos por quem depende do Distrito. A assessoria de comunicação da Prefeitura de Gravataí afirma quer não há previsão de obras estruturais ou algum novo projeto de iluminação pública para o Distrito Industrial. A área é incluída nas ações de tapa-buracos e manutenção da sinalização viária.
— Muitas pessoas vêm trabalhar de bicicleta no começo da manhã, quando ainda não nasceu o sol e é muito perigoso, porque essas rua são muito escuras. Falta iluminação — critica o operador de empilhadeira Israel Fraga, 40 anos, que há 14 trabalha na Dana.
Para quem lida com o transporte, a estrutura viária do Distrito é um obstáculo.
— O acesso é ruim, precário. E a pavimentação está esburacada. Precisamos de mais atenção para o lugar onde é escoada a produção de Gravataí — alerta Diego Helfer, responsável pela transportadora Irapuru.
Na lista de problemas urbanos que prejudicam o Distrito ainda está o uso indiscriminado dos terrenos vazios como depósitos de lixo e a existência de apenas uma linha de ônibus, com poucos horários, para atender a região. A partir de junho, a Acigra pretende reunir os empresários do Distrito Industrial e encaminhar ao governo municipal as demandas do setor.
UM PASSEIO PELA HISTÓRIA
Quem circula pelas ruas do Distrito Industrial é apresentado, mesmo sem perceber, à história da indústria local. Os nomes das ruas homenageiam símbolos dessa expansão.
: Acylino Francisco de Medeiros: Idealizador de fábrica de cerâmicas pioneira em Gravataí. Doou as terras onde hoje fica o estádio do Cerâmica. Foi vereador e presidiu a Câmara de Vereadores. Foi também fundador do primeiro jornal da cidade “O Gravataiense”. Nesta rua, fica a Metalúrgica Carlos Becker.
: Paul Zivi: Suíço, criou na década de 1930, em Porto Alegre, a Hércules e se tornou o primeiro fabricante de talheres finos em aço inoxidável da América Latina. A empresa deu origem à atual Mundial. É uma das principais ruas do Distrito, onde ficam, além da planta da Mundial, com 52 hectares, a Rauter, a Metalúrgica Fimac e a Fitesa.
: Plínio Gilberto Kroeff: Foi o homem forte na expansão da Zivi-Hércules e da Eberle, que se uniram para formar a Mundial. Presidiu a Fiergs e foi um dos principais responsáveis pela instalação do Senai em Gravataí. Dá nome à principal avenida do Distrito Industrial, que cruza o bairro de uma ponta a outra.
: Ricardo Bruno Albarus: Imigrante alemão, foi fundador da Albarus, em 1947, em Porto Alegre, como uma oficina de mecânica de precisão que deu origem à fabircante de peças e componentes associada, a partir dos anos 1970, à norte-americana Dana. Nesta rua, fica justamente a planta da Dana.
: J. Aloys Griebeler: Criador da Jackwal que, em 1949, iniciou a produção de fogareiros, em Porto Alegre. A indústria inaugurou sua sede em Gravataí em 1978 e, já sob a liderança de Francisco Oderich, foi uma das principais responsáveis por melhorias no Distrito Industrial desde a sua origem.
UM HISTÓRICO DE INCENTIVOS
: Anos 1950: Aprovado na Câmara de Vereadores projeto em que o município doava terreno a quem quisesse implantar uma indústria em Gravataí. O resultado foi o primeiro ciclo de indústrias na cidade. Em 1958, instalou-se a Riopel. Na sequência, no começo dos nos 1960, vieram a Synteko, Trafo e a Icotron, atual TDK.
Em 1960: 61 indústrias (326 funcionários) ainda incluindo Cachoeirinha
Em 1970: 124 indústrias (2.522 funcionários)
: Anos 1970: No impulso do “milagre econômico”, o governo estadual adeuou-se ao Plano Nacional do Desenvolvimento, e projetou cinco distrititos industriais para o Estado: Gravataí, Cachoeirinha, Santa Maria, Rio Grande e Butiá. Para isso, em 1973 é editado um decreto desapropriando a área vizinha à projetada Freeway para a criação deste distrito.
Para aderir ao projeto, a empresa deveria enviar uma carta consulta ao secretário de Indústrias e Comércio do Estado comunicando o interesse e a área de atuação da indústria. Aprovado, o empreendedor era convidado a assinar um “contrato preliminar” com a Cedic, que era o órgão estadual responsável pela desapropriação da área de 387 hectares no começo do programa, para a cessão do terreno a título precário. Um ano depois, com o projeto para a indústria concluído, o terreno era escriturado e o interessado adquiria o terreno em definitivo, com a condição de iniciar suas operações em até quatro anos.
Os primeiros acordos foram assinados em 1974 e, dois anos depois, o Distrito Industrial foi oficialmente inaugurado. Foi um marco para a economia local.
Em 1975: 122 indústrias (3.575 funcionários)
Em 1980: 169 indústrias (9.499 funcionários)
Em 1985: 214 indústrias (11.465 funcionários)
: Anos 2000: No final da década de 1990, a indústria de Gravataí viveu um novo ciclo de crescimento, com a criação do Complexo Industrial Automotivo, a partir da planta da GM, que recebeu por parte do governo estadual financiamento de 100% do ICMS e outras vantagens para a instalação entre a Freeway e a RS-030. O complexo já recebeu outras duas ondas de incentivos para ampliação da produção e atualmente conta com 25 empresas no complexo.
Também a partir dos anos 2000, o Fundopem — com negociação do ICMS — passou a ser aplicado para a atração e ampliação de indústrias no Distrito Indusrial. Nessas condições, a Fitesa se instalou em Gravataí.