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COM VÍDEO | Como é o dia a dia de uma pessoa cega?

Marido e esposa: Edson da Rosa e Patrícia, ambos deficientes visuais, têm uma vida - quase! - normal. Ela, como assessora de políticas públicas para pessoas com deficiência e presidente da ADVA, ainda ensina como a sociedade tem que agir para conviver com os c

— A cegueira não é um problema, é uma deficiência, uma característica que define uma pessoa. Problema, mesmo, é o câncer que tive em 2016 e que me obriga a ter certos cuidados e a fazer consultas periódicas. Problema, mesmo, são as contas para pagar!

A frase é de Patrícia Lisboa da Rosa, cega desde os dois anos de idade quando, com um problema de saúde, recebeu um medicamento do qual era alérgica. Os médicos só se deram conta dessa rejeição quando ela já tinha perdido o olho direto e comprometido totalmente a visão do esquerdo.

Hoje uma funcionária pública municipal concursada e lotada na Assessoria de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência, e cursando o último ano da faculdade de Direito na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) campus de Gravataí, Patrícia diz que se considera uma pessoa feliz.

Principalmente por ter superado todos os obstáculos que o dia a dia e as pessoas lhe impuseram desde a infância. A começar pela educação. Só pode ser matriculada quando tinha oito anos e, mesmo assim, na chamada – à época – classe especial em que era a única aluna cega.

Aprendeu a ler e escrever em braile, e hoje utiliza o método no seu cotidiano ao ponto de ter um caderno que transformou em agenda telefônica. Tudo em braile. E explica que usa dois dedos para ler.

— Um para decifrar os sinais, ver o que está escrito, e o outro para acompanhar a linha que estou lendo — diz.

Datas e gêmeos

Patrícia Lisboa, que é como prefere ser chamada, faz aniversário hoje, 15 de janeiro. É casada há 17 anos a serem completados neste 17 de janeiro com Edson Santos – também deficiente visual diagnosticado com baixa visão – e mãe de Yasmim e Gabryel (assim mesmo, com “y”), gêmeos que em março vão completar 14 anos. Além disso é, desde o ano passado, a presidente da Associação das Pessoas com Deficiência Visual e Amigos de Gravataí.

Com bom humor, desenvoltura e independência, ela e o marido receberam a reportagem do Seguinte: na frente de casa, em um pequeno e bem arrumado condomínio no Parque dos Anjos. Sem o uso de bengala e sem se apoiarem em muros ou paredes, situação esperada por quem é leigo e desconhece como se comporta um cego no ambiente de casa ou no trabalho.

Entramos direto na cozinha.

— É a melhor parte da casa! — diverte-se ela.

Recebidos com café, bolachas, uvas e ameixas.

Sobre o café, perguntada sobre quem passou, numa tentativa de quebrar o gelo que ainda restava, Patrícia lasca:

— Foi a cafeteira!

Ela é assim.

Despachada.

Este é o termo para uma pessoa de bem com a vida, alegre, que fez da dificuldade um desafio a ser vencido. E, aos poucos, ela vai subindo degrau por degrau da escalada que traçou como objetivo pessoal. Não lutou contra o câncer, em 2018. Ignorou a doença e tratou de vencê-la. Não se incomoda com as derrapagens de quem não sabe lidar com uma pessoa cega. Ensina como fazê-lo.

Por exemplo, não abriu mão de um curso superior. Tentou Psicologia, depois Administração de Empresas, mas foi no curso de Direito que se encontrou. Fica “danada da vida” com o preconceito e a ignorância. Diz que isso ainda é comum em muitos lugares, que já enfrentou situações bem constrangedoras mas que trata de tirar disso lições que leva para o seu dia a dia.

Presidente da ADVA

Como presidente da Associação das Pessoas com Deficiência Visual e Amigos de Gravataí (ADVA), Patrícia diz que ainda há muito a ser feito pelas pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, não apenas em favor daquelas que são cegas. Alerta, entretanto, que para isso são necessárias organização e mobilização, detalhes que estão faltando em Gravataí na avaliação de Patrícia.

Por exemplo, no município há aproximadamente 30 mil pessoas que têm algum tipo de deficiência visual, cegueira e baixa visão. Entretanto, apenas 50 delas, por aí, são participantes ativas da entidade que ela presidente. Culpa, em parte, conforme a própria Patrícia, à inércia da associação que esteve um tempo desativada.

Agora, passa por um processo de reorganização, inclusive legal, já que parte dos documentos da ADVA estava desatualizada.

Além disso, ensina:

— A sociedade precisa, de alguma forma, participar. Não é ajudar, mas se colocar no lugar de uma pessoa que tem deficiência, no lugar de quem tem uma cor diferente, no lugar de quem tem uma classe social diferente. Precisamos nos colocar uns no lugar dos outros, se solidários, com todas as pessoas.

Sobre a aceitação de uma pessoa cega, como ela é, no mercado de trabalho, por exemplo, Patrícia garante que é de medo. As pessoas têm medo. Mas admite que esta situação agora é menos frequente do que verificou quando era criança e precisou estudar, ou mais adiante, já jovem.

— A palavra mais certa para definir o que a gente vê na rua é medo. As pessoas têm medo, que é o que a gente chama de preconceito Mas a palavra certa é, mesmo, medo. As pessoas temem o diferente, por não saberem como falar com uma pessoa cega ou ajudá-la. Daí que a opção é nem falar com esta pessoa por não saber o que falar, não saber o que ela precisa e nem como vai reagir.

A DIFICULDADE

A Associação das Pessoas com Deficiência Visual e Amigos de Gravataí, através do setor de empregabilidade, mantém contatos frequentes com empresários no sentido de promover a colocação no mercado de trabalho de pessoas com deficiência visial. Mesmo sendo qualificadas, com cursos diversos, a resposta m ais comum é… Não!

— Houve um caso em que mantivemos contato com uma empresa e, de cara, a menina disse que não poderia contratar uma pessoa com deficiência visual. Ela disse que “cego vai derrubar todas as prateleiras, não tem como contratar cegos”. Isso é um preconceito na forma do medo, medo do que é diferente.

A frase

A deficiência não é um problema, como uma doença grave. A gente tem que entender a deficiência como uma condição de vida e, como tal, que exige que nos adaptamos às várias formas possíveis para que possamos viver. Eu não deixo a deficiência mandar em mim, e digo para as pessoas para que não deixem que a deficiência tenha o controle sobre elas.

Patrícia Lisboa
Deficiente visual e presidente da ADVA de Gravataí

A vida de Patrícia

1

Nascida em Porto Alegre, Patrícia mora em Gravataí desde os seis anos de idade. Atualmente é funcionária pública municipal e mora em um condomínio no Parque dos Anjos.

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Aos dois anos, levada ao médico por causa de uma forte dor de ouvido, foi medicada sem antes ter sido submetida a um teste para saber se era alérgica, ou não, a algun tipo de princípio ativo.

3

Tratada por vários dias com o medicamento, com um quadro que não evoluía, foi levada a outro hospital onde foi diagnosticada com a síndrome Steve Johnson., doença que resseca – queima! – as mucosas do corpo. As primeiras são as retinas dos olhos.

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Havia alta possibilidade de Patrícia ser portadora de outras sequelas por conta da medicação errada, fato que ela mesma nega e destaca que o dano maior foi mesmo a perda da visão.

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No início do processo de alfabetização a família de Patrícia teve dificuldade para matricular a filha em uma escola regular. Na época tinha oito anos e todas as escolas negavam o atendimento educacional a ela.

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Só depois de muitas tentativas começou a ser alfabetizada, em braile, em uma classe especial, como era chamado o serviço educacional dispensado nos estabelecimentos de ensino às pessoas portadoras de algum tipo de deficiência.

7

Em seis meses foi alfabetizada e submetida a uma prova de nivelamento – possível ainda no começo dos anos 90 – para trocar de ano, começando o ano seguinte já no segundo ano do ensino básico.

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Depois disso, seguiu estudando no ensino regular em salas de aulas em que convivia com alunos que não portava deficiência visual. A rejeição voltou quando precisou trocar de escola para cursar o quinto ano.

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Em outra escola matriculou-se com um objetivo: queria provar para ela mesma que era possível andar de ônibus e se locomover sozinha. Fez o curso preparatório em Porto Alegre, porque não havia disponível em Gravataí.

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Outra barreira que Patrícia quebrou foi quando botou na cabeça que queria estudar à noite. Ela lembra que era um tabu e a negativa era comum sob o argumento de que aluno cego não pode estudar à noite.

A BENGALA

Dentro de casa, no trabalho e na faculdade, Patrícia dispensa o uso da bengala. Ela é responsável pelas tarefas domésticas, inclusive cozinhar, lavar roupas… Vez por outra, porém, acontecem pequenos acidentes. Na segunda-feira, ela queimou um dedo. E conta rindo.

— Foi bem coisa de dona de casa. Fui limpar o fogão e esqueci que estava quente. Qualquer dona de casa faz isso.

A rotina de um cego em seu ambiente doméstico ou profissional depende de pequenos detalhes que devem ser observados e praticados por quem vive na casa ou no trabalho. A principal delas é não mudar as coisas de lugar sem que a pessoa cega seja informada e tenha conhecimento da mudança realizada.

— A gente sabe que tal vaso com flores vai estar à direita da porta. Se chegar em um dia e estiver na esquerda, sem que ninguém avise, é quase certo que vai acontecer um acidente — explica.

Na Prefeitura, onde aconteceram sucessivas mudanças do mobiliário, sempre foi comunicada destas alterações. Inclusive, anda sem a bengala e vai ao saguão receber as pessoas que procuram o setor em que trabalha.

— As pessoas se assustam quando eu digo que podem me seguir, que a minha sala é tal, entro e sento… As pessoas se comportam com certa incredulidade. Algumas ficam pensando com certeza “como assim? Ela é cega e não está nem com a bengala”?

A propósito, Patrícia garante que a bengala é extremamente útil não só no piso tátil, cada vez mais comum nas calçadas e estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços, mas em todo e qualquer ambiente. Chega a afirmar que “a bengala é parte do corpo de uma pessoa cega”.

— Não se tira a bengala da mão de uma pessoa cega, não se toca na bengala assim como não se toca em uma cadeira de rodas sem autorização da pessoa que a utiliza. A cadeira de rodas, a bengala ou a muleta funcionam como uma extensão do corpo da pessoa.

A pergunta

Seguinte: – Patrícia, tu és uma pessoa feliz? Por que?
Patrícia Lisboa
– Sim, muito. Graças a Deus. Porque eu tenho minha família, porque estou viva, porque venci o câncer – sou uma vitoriosa, porque estou quase me formando quando todo mundo dizia que eu não me formaria (curso de Direito), todo mundo dizia que eu não teria emprego e hoje sou uma servidora pública, que eu não teria uma casa e não teria meus filhos, mas eu tenho… Sou feliz porque Deus é bom para comigo e eu tenho vencido, dia após dia, os obstáculos que surgem.

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