A casa da Rua Caxias do Sul, no bairro Morada do Vale III, há muito tempo não é apenas a moradia de uma família. Virou uma verdadeira embaixada do bem. É a partir dali que Ricardo Fernandes, brigadiano aposentado, de 61 anos, cumpre uma missão de levar o bem seja onde for. Desde o começo do anos 1990, ele passa os seus dias recolhendo e distribuindo donativos. São cobertas, roupas, objetos para casa, materiais escolares, alimentos…
— Eu costumo dizer que aceito tudo o que o ser humano precisa. Só não aceito uma coisa: dinheiro. Como eu vou botar dinheiro na boca de uma pessoa? Nunca vi dinheiro fazer passar o frio de ninguém. Se tem dinheiro para ajudar, vai lá e compra uma fralda geriátrica, um alimento, um brinquedo e traz para nós — diz.
Ricardo não sabe exatamente o motivo de ter se tornado um homem dedicado a esta causa. Não foi promessa ou nada parecido com isso. Parece ter sido algo bem mais profundo.
Logo que se aposentou como sargento da Brigada Militar, ele foi visitar Coronel Bicaco, no Alto Uruguai, a terra da companheira, Adelaide Saldanha Ribeiro, hoje com 68 anos. Eles haviam adotado um menino carente daquela terra e, depois de encherem uma mala com roupas que já não lhe serviam, foram entregar aos irmãos biológicos deles.
— Era uma ajuda, virou uma missão — resume Adelaide, que é o esteio de Ricardo nas suas andanças, mas prefere não aparecer quando a causa é divulgada na mídia.
É que o Ricardo ficou impressionado com o que viu por lá.
— Era um lugar muito pobre mesmo. Eu comecei a observar que, às vezes, aqui na cidade as pessoas têm uma panela meio estragadinha e não dão bola. Jogam fora. Lá, eu vi gente usando lata de tinta como panela, juntando toquinho de lápis para ter material para as crianças. Eu tinha que ajudar aquela gente, não sei exatamente porque — conta ele.
Na verdade, ele já parou para pensar no motivo de ter se tornado o Ricardo dos donativos. Na infância, a mãe ficou viúva e se viu no mundo com ele e outras cinco crianças. Ricardo passou fome, foi engraxate, lavou ônibus, fez de tudo um pouco para ter algum troquinho no bolso e não se deixar levar pelo crime, por exemplo.
180 cidades atendidas
Começou a sua causa convocando os vizinhos da Morada do Vale a doarem coisas que seriam levadas para Coronel Bicaco. Carregava nos braços mesmo cada doação e, na hora de levar para o destino, seguiam ele, a Adelaide e os sacos com donativos de ônibus.
— As pessoas começaram a se mobilizar. Primeiro, peguei um carrinho de mão para recolher donativos. Depois, comprei a carroça que é o meu orgulho. Ela não tem preço. Faço entre cinco e seis viagens com ela por toda a redondeza aqui diariamente — relata.
Por outro lado, em pouco tempo o trabalho de Ricardo começou a ser visto pelos governantes locais, lá no Interior. Primeiro, lhe disponibilizaram uma caminhonete, depois um caminhão. E, quase 30 anos depois, ele já ajudou pelo menos 180 cidades gaúchas — quase todas, mais de uma vez —, além de lugares no Uruguai, Argentina e Santa Catarina. São 18 carretas carregadas por ano.
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A distribuição começa em abril e se estende, normalmente, por todo o inverno. Afora os casos de tragédias naturais e outras situações de calamidade, em que Ricardo rapidamente mobiliza a comunidade e leva a ajuda.
— Eu faço questão de acompanhar cada doação, e quando eu volto, com os sacos vazios, parece que eu estou nadando em uma piscina cheia de dinheiro. Isso me completa mesmo. Parece que eu joguei fora tudo de ruim que poderia ter no coração e na alma, e fico só recebendo de volta esse carinho. Isso me faz muito bem, mesmo — orgulha-se.
Foi assim outro dia, e um asilo de Cachoeirinha. Ricardo foi buscado em casa por um amigo que faz parte de um centro espírita. Ele o convidou para fazer a entrega de uma cadeira de banho.
— Eu estava todo sujo, pintando umas cadeiras, nem queria ir, mas ele me convenceu. Fui do jeito que eu estava mesmo — lembra.
Ao chegar lá, Ricardo viu no olhar da senhora que ganhou a cadeira o mesmo brilho, e o choro misturado com riso, dos meninos de Tucunduva quando ganharam um ferrorama entregue por ele.
— No final, todos me abraçavam, nós conversamos um bom tempo e eu não queria mais sair de lá. Eu estava me sentindo em casa — emociona-se.
: A casa foi toda adaptada para receber os donativos | GUILHERME KLAMT
Casa da doação
Não é à toa que a cachorrinha Chimbica faz festa a cada um que bate o portão da casa na Rua Caxias do Sul. É que as visitas são constantes. Diariamente, pessoas deixam ali alguns donativos. A rotina de Ricardo e Adelaide é separar, limpar e classificar cada um dos objetos entregues a eles. O resultado disso, impressiona.
A casa foi toda adaptada à causa. Além das construções onde moram o casal e a mãe de Ricardo, há outros dois galpões de alvenaria com boa parte das salas já abarrotadas até o teto de sacos com donativos. Ricardo garante que agora é período de "baixa temporada", por isso, é tempo de organizar as doações da melhor forma possível.
Dizer que o trabalho para o bem do Ricardo é reconhecido, é muito mais do que força de expressão. A verdade é que já não há espaço para qualquer lembrança da família nas paredes da casa. Literalmente, todos os cômodos têm as paredes forradas com certificados, títulos e homenagens com diplomas ou lembranças pelo trabalho dele.
: As paredes já não têm espaço para tantas homenagens | GUILHERME KLAMT
Orgulhoso, Ricardo conta que já são mais de 100 títulos de cidadão. E lembranças raras em tempos de intolerância. Em uma mesma prateleira, estão a imagem de Nossa Senhora Aparecida e um quadro confeccionado por uma família muçulmana com quem ele criou amizade na fronteira com o Uruguai. Ele não é ligado a nenhuma igreja ou religião. Tem seu próprio conceito do bem e do papel de todas as crenças.
— Não adianta andar todo o dia com a bíblia na mão e passar reto por quem está precisando de ajuda na rua. Muitas pessoas pensam que quem está com elas em uma religião é um povo diferente, que devem se ajudar entre si. Pois eu penso que, quem está em uma igreja, de qualquer crença, já está salvo lá. A missão tem que ser apoiar quem não está — define.
A notoriedade de quem tem tantos anos de boas causas, garante o Ricardo, não o deixou "todo bobo".
— Eu recebo esses títulos, o reconhecimento, mas eu sei que preciso continuar fazendo. Já estou terminando o meu ciclo de vida e percebi que só fui entender o verdadeiro sentido de viver no meio do caminho. Eu vivo com um monte de problemas de saúde, mas, quer saber, uma hora eu vou morrer de qualquer jeito. Então, eu continbuo fazendo o que me faz bem e faz todos se sentirem bem — resume RIcardo, o benfeitor.
PARA AJUDAR
: É possível fazer contato com o Ricardo para entrega de donativos ou pedidos de entregas pelo 51 99806-9860.
: Ou ir direto à casa da família, na Rua Caxias do Sul, 221, Morada do Vale III, em Gravataí.
: É possível também acompanhar o trabalho dele pelo facebook.com/ricardo.donativos