A gênese de uma grande causa, às vezes se explica com uma singela percepção. Foi assim em 1962, à margem do Passo do Val, uma das curvas do até então sinuoso Rio Gravataí, para o guri Paulo Roberto Linck Müller, o hoje conhecido engenheiro Paulo Müller, então com 10 anos. Ele seguia os passos do pai e o acompanhava nas pescaria e na caça de marrecões na região de banhados do rio. A poucos metros, deparou-se com uma máquina completamente estranha à paisagem. Tinha um imenso guindaste com um “colherão” na ponta. Ela abria um valo no terreno alagadiço e mudava o curso da água do Gravataí. Enquanto criava um efeito de ralo para a água represada no terreno alagadiço em direção ao canal recém aberto, secava a terra e matava a subsistência dos marrecões e outras espécies do banhado.
Não demorou muito para o guri, nascido e criado desde sempre em Gravataí, no bairro Oriçó, perceber que aquela máquina simbolizava o possível fim de uma herança de família, que era o convívio com o banhado.
— Aquilo me tocou profundamente. Foram dez anos daquelas máquinas trabalhando e abrindo um canal na beira do banhado. Eu chuleava para que ela estragasse, parasse de fundionar. Às vezes, eu e uma gurizada subíamos lá em cima e enchíamos de terra e açúcar na máquina para fazer os motores pararem — conta.
Era a forma que eles tinham de defender o que, afinal, era deles e de todos os moradores da região do Vale do Gravataí. Anos depois, o sentimento de Paulo Müller virou a causa de toda uma vida. Hoje, aos 66 anos, o legado do homem que foi fundamental para a criação da Associação de Preservação da Natureza do Vale do Gravataí (APN-VG) e de todo o movimento ambiental da região é visível em quase tudo o que se pense sobre o Rio Gravataí.
— Só o fato de vermos 10% do banhado original ainda existente e com sinais de recuperação constante, me dá uma satisfação imensa. Eu tenho certeza de que a nossa luta não é inglória. Só pensa que não vale a pena quem tem preguiça de fazer as coisas mudarem — diz.
A causa de uma vida
Resignação foi o que o filho do Lauro José Müller e da Laura Linck Müller, nascido em 1º de agosto de 1952, nunca teve. Na década de 1970, cansado de deparar com o que acontecia nas nascentes do rio, ele resolveu gritar:
— Ah, eu avisei: se continuassem fazendo o que estavam fazendo com o banhado, iriam matar o rio. Não iria mais ter água nas cidades. Não adiantava eu dizer que estavam acabando com o habitat dos marrecões, dos cervos ou dos jacarés. Toquei no ponto que realmente incomodava e alarmava a todos. E já sentíamos a falta da água no verão nas nossas cidades.
A mobilização iniciou com artigos no jornal Hiena, que circulava em Gravataí. Depois, Paulo Müller foi parar em um encontro de prefeitos no Vale do Sinos e denunciou o crime praticado pelo governo federal com a drenagem do Banhado Grande feita pelo então Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS). Pronto. Dias depois, a Rede Globo baixou em Gravataí e Paulo Müller, ao lado do então prefeito Ely Corrêa, se mandou para o banhado denunciando em rede nacional a drenagem do berço da vida do Gravataí.
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Bandeira, Müller já tinha. Faltava um movimento. E ele surgiu em junho de 1979, quando a APN-VG foi fundada. Não, não era mais um daqueles movimentos organizados por ecologistas que estudaram o assunto e, por vezes, se isolavam da opinião pública. Ao contrário, a APN tinha desde o seu surgimento a raiz na denúncia de um problema que batia à porta de todos.
— Desde sempre, procuramos mostrar que a água que o canal do DNOS tirou do banhado é a mesma que corre por aquele canal criado naquele tempo e provoca as cheias em Cachoeirinha ou Alvorada no inverno. Ou que escorre rio abaixo e nos deixa a todos na seca no verão. Não era muito difícil fazer entender que o problema sempre foi de todos — conta.
Estavam lá na criação da APN advogados, metalúrgicos, jornalistas, engenheiros, associações de moradores e até caçadores. A prova da força do movimento veio sob a forma de uma procissão ecumênica, em junho de 1980. Mas o que isso tinha a ver com a forma combativa como o movimento ambiental se mostrava naquele momento?
— Sim, se fizéssemos um protesto, levava laço dos militares. Isso era proibido. E a nossa associação sempre conseguiu ficar afastada dessa questão partidária. Tínhamos apoiadores da própria Arena, porque o banhado sempre foi importante para todos. Talvez essa formação tenha sido fundamental para a nossa causa seguir forte até hoje.
O movimento reuniu 10 mil pessoas cantando pela preservação do Banhado Grande e do Rio Gravataí.
: Em 1984, no Ciclo de Debates sobre Banhados do RS, Lia Ciarelli (esq.), Cláudio Wurlitzer (centro) e Paulo Müller (dir.) | ARQUIVO CLAUDIO WURLITZER
Desde então, Müller garante que não cansou da causa, mas se adaptou. Assim como todo o movimento ecológico.
— Éramos bem mais combativos, comprávamos as brigas porque era necessário. Tanto é que conquistamos muitas coisas, como a criação de um comitê de bacia, de estudos sobre o rio e a água. Hoje, a causa ambiental é de todos mesmo, não apenas em discurso. Isso fez com que o movimento se transformasse muito mais em articulador do que em brigador. Eu me adaptei, mas ainda estou lutando — garante.
Referência no município
No começo da década de 1980, Paulo Müller foi convidado a atuar como consultor na recém criada secretaria de planejamento pelo prefeito Edir Oliveira. E foi ficando. No governo Abílio, foi finalmente contratado. Em 1994, outra vez com Edir na prefeitura, o departamento de meio ambiente foi transformado na atual Fundação Municipal do Meio Ambiente (FMMA), presidida por Paulo Müller durante o governo Daniel Bordignon.
Ironicamente, o atual prefeito recebeu suas primeiras lições sobre o banhado e as particularidades do rio com o engenheiro que ainda trabalha na FMMA. É que Marco Alba era funcionário na secretaria que deu início à gestão ambiental da cidade.
O legado
— Cada vez que eu subo o Rio Gravataí, eu às vezes fico pensando que eu tive um papel importante para começar isso aí tudo, para fazer as pessoas falarem do nosso rio. Isso sempre me renova a energia. E quando eu desço o rio, em direção a Cachoeirinha, deparo com aquele lixo todo, o esgoto, vejo o horror que somos capazes de fazer com o nosso rio. Mas mesmo assim, me orgulho da natureza, porque o rio se recupera. Se o homem soubesse usar essa força da natureza ao seu favor, e não lutar contra ela, certamente teríamos uma sociedade muito melhor — reflete.
Pai do Paulo Müller Filho, de 34 anos, e da Priscila dos Santos Müller, 26 anos, o ecologista, como gosta de se declarar, ensinou-os desde cedo o caminho pelo rio em direção ao banhado. Mas nenhum deles enveredou profissionalmente para esta causa. A esperança do Paulo Müller vai mais além.
— Ah, já estou incomodando eles para me darem um neto que suba esse rio, mas tá difícil — brinca.
O conselho do Lutz
O próprio Paulo Müller levou um tempo para entender que ele, um caçador, poderia, sim, erguer a bandeira da proteção ambiental. Era contraditório também para ele.
— Quando me disseram que eu seria o presidente da APN, quase caí para trás. Como poderia um caçador ficar à frente do movimento?
Foi aí que a sabedoria de dois símbolos do movimento ambiental gaúcho entrou em cena. José Lutzemberger e Augusto Carneiro vieram de Porto Alegre e contaram o Müller sobre o que ocorrera nos Estados Unidos. Lá, um grupo de caçadores de marrecos alertou sobre o risco do movimento de destruição dos banhados e do desaparecimento da ave. Começaram a criar reservas naturais particulares.
Nada mais era do que a compra de áreas de banhado no país e também nos vizinhos, Canadá e México. O movimento deu início aos estudos que até hoje norteiam a defesa das áreas alagadiças como reservas de vida e energia em todo o planeta.
— Acho que foi essa minha vivência com o banhado desde muito pequeno que me fez não só observar o ambiente, mas ler o que ele está me transmitindo. Entender o porquê de cada fenômeno. Muitas vezes, pessoas com muito estudo não têm essa capacidade — reflete.
Ainda hoje, Paulo Müller se considera um caçador, que já não caça.
: O canal do DNOS mudou para sempre o banhado | DIVULGAÇÃO FMMA
Um canal que mudou o rio
Falar em canal do DNOS hoje pode ser até desconhecido para os mais jovens. Mas foi essa obra de engenharia, encampada durante uma década pelo governo federal na área do banhado, que destruiu a maior parcela da região que era responsável pela regulação natural da água no Rio Gravataí.
A ideia era abrir terreno para a agricultura. Quando as máquinas do DNOS pararam, as dos agricultores que adquiriam áreas para o plantio do arroz só estavam começando. Abriam novos canais de irrigação e assim transformavam o antigo curso de um rio sinuoso. Virou um grande canal.
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Quanto vale a água do Rio Gravataí?
Durante mais de duas décadas, Paulo Müller foi um defensor intransigente da construção de uma barragem como solução para recuperar a capacidade de armazenar água na nascente do rio. Mas, justamente pela importância que o movimento criado por ele ganhou, que o conceito mudou um pouco.
A região foi foco de um complexo estudo da Metroplan, finalizado recentemente, apontando a criação de pequenos barramentos ao longo do canal como forma de recuperar, aos poucos, a antiga forma do banhado que Paulo Müller conheceu quando criança.
— Não podemos mais acabar com o canal, mas é importante acabar com a função principal dele, de carregar toda a água para baixo rapidamente. Ele agora vai ser importante, mas para a função contrária. Resta seguirmos na nossa luta para que o projeto saia do papel — resume.