3º Neurônio | opinião

Confúcio casará com Marx?

Lanxin Xiang, erudito intelectual chinês especialista em China, escreveu um livro, The Quest for Legitimacy in Chinese Politics [A busca da legitimidade na política da China], que é, em minha opinião, o mais extraordinário esforço, em décadas, para reduzir a distância político-histórica que divide Ocidente e Oriente.

É impossível, numa coluna curta, fazer justiça à relevância das discussões que esse livro inspira. Destacaremos, aqui, algumas das questões principais, esperando que atraiam o leitor informado – especialmente os habitantes do Departamento de Estado, na Av. Beltway, agora convulsionados por vários graus de sinofobia.

Xiang ataca direto a contradição fundamental: a China é amplamente acusada, pelo Ocidente, de falta de legitimidade democrática, exatamente porque desfruta de boom econômico de quatro décadas, sustentável e histórico.

Ele identifica duas fontes principais do problema chinês: “Por um lado, há o projeto de restauração cultural por meio do qual Xi Jinping tenta restaurar a ‘legitimidade confuciana’ – o tradicional Mandato do Céu. Por outro lado, Xi recusa-se a iniciar qualquer reforma política, porque é sua prioridade preservar o sistema político existente, ou seja, um sistema de governo derivado principalmente de uma fonte estrangeira, a Rússia bolchevique.”

 

Aí está a questão: “Os dois objetivos são totalmente incompatíveis”

Xiang argumenta que para a maioria dos chineses – o aparelho e a população em geral – esse “sistema alienígena” não pode ser preservado para sempre, especialmente agora que um renascimento cultural está focado no Sonho Chinês.

É desnecessário acrescentar que a intelectualidade ocidental não entende a trama – por causa da insistência em interpretar a China sob as hipóteses da ciência política ocidental e da “historiografia eurocêntrica”. O que Xiang tenta em seu livro é “navegar cuidadosamente pelas armadilhas conceituais e lógicas criadas pelas terminologias do pós-iluminismo”.

Daí sua ênfase na desconstrução de “palavras-chave mestras” – conceito maravilhoso diretamente da ideografia. As quatro palavras-chave mestras são legitimidade, república, economia e política externa. Esse volume dedica-se à legitimidade (hefa, em chinês).

 

Quando a lei é sobre a moralidade

É uma alegria seguir o modo como Xiang desmistifica Max Weber, “o pensador original da questão da legitimidade política”. Weber é criticado por seu “estudo bastante perfunctório do sistema confuciano”; insistiu em que o confucionismo – que só enfatizaria igualdade, harmonia, decência, virtude e pacifismo – não poderia desenvolver um espírito capitalista competitivo.

Xiang mostra como, desde o início da tradição greco-romana, a política sempre foi sobre uma concepção espacial, como refletida na polis (uma cidade ou cidade-Estado). O conceito confuciano de política, por outro lado, é “inteiramente temporal, baseado na ideia dinâmica de que a legitimidade é determinada pelo comportamento moral cotidiano de um governante”.

Xiang mostra como o hefa contém, de fato, dois conceitos: “ajuste” e “lei” – com “lei” dando prioridade à moralidade.

Na China, a legitimidade de um governante é derivada de um Mandato do Céu (Tian Ming). Governantes não justos perdem, inevitavelmente, o mandato e o direito de governar. Isto, argumenta Xiang, é “argumento dinâmico ‘baseado em atos’, diferente de ser ‘baseado em procedimentos’”.

Essencialmente, o Mandato do Céu é “uma antiga crença chinesa de que tian [“céu”, mas não o céu cristão, completado com um Deus onisciente] concede ao imperador o direito de governar com base em sua qualidade moral e capacidade de governar bem e justamente”.

A beleza disso é que o mandato não requer conexão divina ou linha de sangue nobre, e não tem limite de tempo. Os estudiosos chineses sempre interpretaram o mandato como uma forma de combater o abuso de poder.

O ponto crucial geral é que, ao contrário do Ocidente, a visão chinesa da história é cíclica, não linear: “A legitimidade é, na verdade, um processo interminável de autoajuste moral”.

Xiang, então, compara esse modo de entender a legitimidade ao modo como o ocidente compreende o conceito. Refere-se a Locke, para quem a legitimidade política deriva do consentimento popular explícito e implícito dos governados. A diferença é que, sem religião institucionalizada, como no Cristianismo, os chineses criaram “uma concepção dinâmica de legitimidade mediante a autoridade secular da vontade geral da população, chegando a essa ideia sem a ajuda de qualquer teoria política fictícia como direitos divinos que a humanidade teria, e ‘contrato social’”.

Xiang não pode deixar de nos lembrar que Leibniz descreveu esse saber como “teologia natal chinesa”, que não conflitava com os princípios básicos do Cristianismo.

Xiang também explica como o Mandato do Céu nada tem a ver com Império: “A aquisição de territórios ultramarinos para o reassentamento populacional nunca ocorreu na história chinesa, e pouco faz para aumentar a legitimidade do governante”.

No final, foi o Iluminismo, principalmente por causa de Montesquieu, que começou a descartar o Mandato do Céu, como “nada além de desculpas pelo ‘Despotismo Oriental’”. Xiang observa como “as ricas interações da Europa pré-moderna com o mundo não ocidental” foram “deliberadamente ignoradas pelos historiadores pós-iluministas”.

O que nos leva a uma ironia amarga: “Enquanto a ‘legitimidade democrática’ moderna como conceito só pode funcionar com o ato de deslegitimar outros tipos de sistemas políticos, o Mandato dos Céus nunca contém qualquer elemento de desacreditação de outros modelos de governança”. É o fim do “fim da história”.

 

Por que não há Revolução Industrial?

Xiang faz uma pergunta fundamental: “O sucesso da China deve mais ao sistema econômico mundial liderado pelo Ocidente, ou aos próprios recursos culturais chineses?”

E então passa a desmontar meticulosamente o mito de que o crescimento econômico só seria possível sob a democracia liberal ocidental – uma herança, mais uma vez, do Iluminismo, que determinou que o confucionismo não estaria à altura da tarefa.

Já tínhamos uma pista de que esse não podia ser o caso, com a ascensão dos tigres do leste asiático – Singapura, Hong Kong, Taiwan e Coreia do Sul, nas décadas de 1980 e 1990. Houve até um grupo de cientistas sociais e historiadores que admitiu a possibilidade de o confucionismo ser um estímulo ao crescimento econômico.

Mas concentraram-se só na superfície, os alegados valores confucianos “núcleo”, de trabalho duro e parcimônia, argumenta Xiang: “O verdadeiro valor “núcleo”, a visão confuciana do Estado e suas relações com a economia, é frequentemente negligenciada”.

Praticamente todos no Ocidente, com exceção de alguns estudiosos não eurocêntricos, ignoram completamente que a China foi a superpotência econômica dominante do mundo, do século 12 até a segunda década do século 19.

Xiang nos lembra que uma economia de mercado – incluindo propriedade privada, transações livres de terras e mão-de-obra móvel altamente especializada – foi estabelecida na China já em 300 a.C. Além disso, “já na dinastia Ming, a China havia adquirido todos os principais elementos essenciais para a Revolução Industrial Britânica no século 18”.

 

O que nos leva a um enigma histórico persistente: por que a Revolução Industrial não começou na China?

Xiang vira a questão de cabeça para baixo: “Por que a China tradicional precisaria de revolução industrial”?

Mais uma vez, Xiang nos lembra que “o modelo econômico chinês foi muito influente durante o período inicial do Iluminismo”. O pensamento econômico confuciano foi introduzido pelos jesuítas na Europa, e algumas ideias chinesas, como o princípio do laisser-faire, levaram à filosofia do livre comércio”.

Xiang mostra não apenas como as relações econômicas externas não eram importantes para a política e economia chinesas, mas também que “a visão tradicional chinesa do Estado contradiz a lógica básica da revolução industrial, pois seu método de produção em massa visa a conquistar não apenas o mercado interno, mas também territórios externos”.

Xiang também mostra como o fundamento ideológico de A Riqueza das Nações de Adam Smith começou a se desviar para o liberalismo individualista, enquanto “Confúcio nunca se desviou de uma posição contra o individualismo, pois o papel da economia é ‘enriquecer muitos’ como um todo, não indivíduos específicos”.

Tudo isso leva ao fato de que “na economia moderna, a conversa genuína entre Ocidente e China quase não existe desde o início, já que o Ocidente pós-iluminismo tem estado absolutamente confiante sobre ser o único possuidor da ‘verdade universal’ e do segredo do desenvolvimento econômico, que alegadamente teria sido negada ao resto do mundo”.

Uma pista extra pode ser encontrada quando vemos o que significa ‘economia’ (jingji) na China: Jingji é “um termo abreviado de dois caracteres que não descreve atividades puramente econômicas ou mesmo comerciais”. Significa simplesmente “administrar a vida cotidiana da sociedade e fornecer recursos suficientes para o Estado”. Nessa concepção, política e economia nunca podem ser separadas em duas esferas mecânicas. O corpo político e o corpo econômico estão organicamente ligados”.

E é por isso que o comércio exterior, mesmo quando a China era muito ativa na Antiga Rota da Seda, “nunca foi considerado capaz de desempenhar papel fundamental para a saúde da economia em geral e para o bem-estar do povo”.

 

Wu Wei e a mão invisível

Xiang precisa voltar ao básico: o Ocidente não inventou o mercado livre. O princípio do laisser-faire foi concebido, primeiramente, por François Quesnay, o precursor da “mão invisível” de Adam Smith. Curiosamente, Quesnay era conhecido, na época, como o “Confúcio Europeu”.

Em Le Despotisme de la Chine [O despotismo da China] (1767), escrito nove anos antes de A Riqueza das Nações, Quesnay mostra-se francamente a favor do conceito meritocrático de dar poder político aos estudiosos e elogiava o sistema imperial chinês “iluminado”.

Uma ironia histórica extra deliciosa é que o laisser-faire, como nos lembra Xiang, foi diretamente inspirado pelo conceito taoísta do wu wei – que se pode traduzir aproximadamente como “não ação”.

Xiang observa como “Adam Smith, profundamente influenciado por Quesnay, que ele encontrara em Paris para aprender a filosofia do laisser-faire, pode ter compreendido corretamente o significado de wu wei, que transpareceria em sua invenção, de uma ‘mão invisível’, sugerindo um sistema econômico proativo, ao invés de passivo, e mantendo de lado a dimensão teológica cristã.”

Xiang revê todos, de Locke e Montesquieu até Stuart Mill, a teoria do “sistema mundial” de Hegel e o “sistema mundo” de Wallerstein, para chegar a uma conclusão surpreendente: “A concepção da China como típico modelo econômico ‘retrógrado’ foi invenção do século 20 construída sobre a imaginação da superioridade cultural e racial ocidental, não sobre a realidade histórica”.

A ideia de ‘retrógrado’ sobretudo, não foi estabelecida na Europa até a revolução francesa: “Antes disso, o conceito de ‘revolução’ sempre manteve a dimensão cíclica, ao invés de perspectiva histórica ‘progressiva’, quer dizer, linear. O significado original de revolução (do latim revolutio, uma “volta”) não contém nenhum elemento de progresso social, pois se refere a uma mudança fundamental no poder político ou nas estruturas organizacionais que ocorrem quando a população levanta-se contra as autoridades do momento”.

 

Confúcio casará com Marx?

E isso nos leva à China pós-moderna. Xiang enfatiza que é consenso popular, na China, que o Partido Comunista “não é marxista nem capitalista, e seu padrão moral tem pouco a ver com o sistema de valores confucianos”. Consequentemente, o Mandato do Céu é “seriamente ofendido”.

O problema é que “casar marxismo e confucionismo é muito perigoso”

Xiang identifica a falha fundamental da distribuição da riqueza chinesa “em um sistema que garante um processo estrutural de transferência injusta (e ilegal) de riqueza, das pessoas que contribuem com mão-de-obra para a produção de riqueza para as pessoas que não contribuem”.

Argumenta que, “o desvio dos valores tradicionais confucianos explica melhor as raízes do problema da distribuição de renda na China, do que as teorias weberianas que tentaram estabelecer uma ligação clara entre democracia e distribuição justa de renda”.

 

Então, o que deve ser feito?

Xiang é extremamente crítico contra o modo como o Ocidente abordou a China no século 19, “seguindo o caminho da política de poder de Vestefália e da demonstração de violência e superioridade militar ocidental”.

Bem, todos nós sabemos como isso saiu pela culatra. Foi o que levou a uma verdadeira revolução moderna – e ao maoísmo. O problema, como Xiang o interpreta, é que a revolução “transformou a tradicional sociedade confuciana de paz e harmonia, num virulento estado vestefaliano”.

Assim, só mediante uma revolução social inspirada em outubro de 1917, o Estado chinês “iniciou o verdadeiro processo de aproximação com o Ocidente” e o que todos nós definimos como “modernização”. O que diria Deng?

Xiang argumenta que o atual sistema híbrido chinês, “dominado por um órgão alienígena canceroso, do bolchevismo russo, não é sustentável sem reformas drásticas para criar um sistema republicano pluralista”. No entanto, estas reformas não devem ser condicionadas à eliminação dos valores políticos tradicionais”.

Então, será o PCC (Partido Comunista Chinês) capaz de fundir com sucesso o confucionismo e o marxismo-leninismo? Forjar uma Terceira Via, única, chinesa? Esse não é só o tema principal dos livros posteriores de Xiang: essa é questão ainda para muito tempo.

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