Basicamente tudo no mundo pode ser usado para o bem ou para o mal. Inclusive a palavra. Não à toa o jornalismo é conhecido como Quarto Poder (os outros três são os existentes no Estado Democrático: Executivo, Legislativo e Judiciário). E por que é um poder? Porque palavras podem levar alguém à glória, ou destruir uma vida.
Na faculdade de jornalismo estudamos o que talvez seja o exemplo mais emblemático do estrago que comunicar com irresponsabilidade pode fazer: o caso da Escola Base. Há quase três décadas, denúncias de abuso contra crianças de quatro anos, que teriam sido praticadas pelos donos de uma escola infantil, foram levadas à imprensa de forma leviana e sem comprovação. Quando se provou que os acusados eram inocentes, já era tarde demais: sete pessoas foram “linchadas” publicamente e tiveram suas vidas sociais arruinadas.
Saiba mais em https://www.opovo.com.br/vidaearte/2023/06/02/escola-base-serie-aborda-acusacao-falsa-de-abuso-infantil-no-brasil.html e https://canalcienciascriminais.com.br/caso-escola-base/
Outro ponto importante que, pelo menos na minha formação acadêmica, foi bem salientado, é que a resposta ou o “erramos” nunca tem a mesma repercussão do que a notícia inicial. É como aquela metáfora de espalhar as penas de um travesseiro: você pode até tentar, juntar alguma parte do conteúdo, mas jamais irá recolher todas as penas que foram espalhadas pelo vento. Então, responsabilidade com o que se fala ou publica é fundamental. Ainda mais nesses tempos em que é tão fácil publicar qualquer coisa na internet.
Pois bem… neste domingo tivemos as palavras sendo usadas nos dois extremos, envolvendo as mesmas pessoas. Foi dia do caderno Canal Extra, do jornal Extra (RJ) publicar uma capa icônica e histórica: os atores Amaury Lorenzo e Diego Martins, intérpretes do casal Ramiro e Kelvin da novela das 9, em uma foto muito caprichada, com o título “Os Namoradinhos do Brasil”. (Sim, estou falando deles de novo, eles são o assunto do momento).
Percebem a dimensão disso tudo? Um casal de dois homens está tendo a maior repercussão da novela, sendo abraçado pelo público, tendo sua história contada com muita sensibilidade, falando de um amor muito verdadeiro e transformador e sendo chamados de “namoradinhos do Brasil” no jornal de domingo! O mesmo Brasil conservador e preconceituoso, que recém saiu de uma onda de intolerância absurda.
É importante demais termos esses dois personagens, tão carismáticos e cativantes, falando abertamente que o amor é possível entre dois homens. E sendo ouvidos! Quando você lê um comentário nas redes sociais de alguém com as palavras “minha mãe homofóbica chorou vendo a cena deles”, é impossível não entender o quanto esses personagens são necessários e icônicos.
Na entrevista (leia em https://extra.globo.com/entretenimento/tv/noticia/2023/10/interpretes-do-casal-kelmiro-de-terra-e-paixao-falam-sobre-torcida-para-serem-namorados-na-vida-real.ghtml), muito bem conduzida pela jornalista Naiara Andrade, Amaury e Diego tiveram espaço para falar do impacto que o trabalho deles está provocando nas mais diferentes pessoas, até as mais conservadoras, E também para lembrar das próprias vivências com o preconceito e a homofobia. Outro marco que eles deixarão na teledramaturgia é ser o primeiro casal homoafetivo sendo interpretado por atores que são da comunidade LGBTQIAPN+, o que com certeza influencia no cuidado e atenção com que as cenas são trabalhadas.
Durante muito tempo, os personagens “do vale” transitavam entre o “chaveirinho de madame”, o amigo “divertido” da protagonista, muitas vezes de forma caricata. Principalmente no horário nobre, dificilmente saíam do núcleo de “alívio cômico” da trama. O capanga Ramiro e o garçom/cantor Kelvin até têm cenas divertidas, mas entregam muito mais sequências profundas, de textos importantíssimos e tocando em temas delicados com precisão (e um tanto de lágrimas). A construção da história deles está sendo muito cuidadosa, e principalmente o desenvolvimento de Ramiro, seus conflitos com os novos sentimentos que batem de frente com as ideias machistas que sempre foram lhe impostas, seu sofrimento de não caber mais onde sempre achou que se encaixava e ao mesmo tempo ter medo de assumir o “novo eu” que está descobrindo, tudo isso tem sido conduzido com delicadeza, aos pouquinhos, e emocionando o público.
Mas um pseudo-jornalista, que com certeza não acompanha a novela, achou-se no direito de usar justamente a imagem da capa tão importante e estragar o momento feliz reduzindo os personagens a um assassino e uma gay fetiche, e suas cenas a mero alívio cômico. Menosprezar o trabalho alheio é algo tão baixo… E se nós, que acompanhamos a trama, ficamos revoltados com esse tipo de comentário, imagina os atores que se dedicam tanto na construção desses personagens? Chega a ser falta de respeito.
Ah, mas o cara estava na rede social dele… Não interessa, quando expressamos opinião, ainda mais sobre assuntos que estão em alta na mídia, a gente é sempre jornalista. Estamos exercendo o papel de formadores de opinião, então responsabilidade e honestidade são fundamentais. No mínimo pesquisar antes de escrever inverdades sobre o trabalho que quer criticar. É tão fácil “dar um google” hoje em dia, que não tem justificativa para ser leviano. E quem se diz crítico deveria entender que bons personagens têm camadas.
Ramiro é empregado do Antônio La Selva desde muito cedo, provavelmente desde menino (ele já mencionou algo nesse caminho). Ele desde que se entende por gente só viveu para servir a esse homem, que é a figura de referência masculina dele, a figura paterna que ele tem. Como Ramiro teria condições de contestar as ordens do patrão? Que repertório ele tem para problematizar as próprias ações, as mortes que comete em nome de um homem a quem ele tem uma espécie de devoção (tem até uma foto do ALS num tipo de altar no quarto do peão)? É a partir da convivência com o Kelvin que Ramiro começa a tecer outras perspectivas e questionar as atitudes, suas e do patrão. Mas é um processo, não acontece de um dia para o outro.
Kelvin também não é linear. Já teve várias atitudes duvidosas, pensando em levar vantagem. Mas é um jovem que, pelo pouco que sabemos, fazia programas no bar onde trabalhava de garçom. Uma vida que não é fácil. Para quantos homens “de bem” da cidade Kelvin deu prazer no quarto, e depois recebeu desprezo em público? São coisas que não precisam ser ditas, quem pensa logo percebe as histórias implícitas. Kelvin também é um jovem que se permite usar as roupas que gosta, maquiagem, adornos, que não esconde sua orientação sexual, mesmo vivendo numa cidade de interior. Que enfrenta os preconceitos de peito aberto. E mesmo sendo tão bem resolvido, tem toda a paciência com o processo de descoberta e aceitação do Ramiro. É cuidadoso e entende as dificuldades daquele homem, de um jeito que raras pessoas estariam dispostas a fazer.
Foi tão injusto que, num dia em que deviam estar só desfrutando da alegria de ver a primeira capa de revista da vida deles, com um ensaio fotográfico lindíssimo, os atores tivessem que lidar com gente que precisa desmerecer o trabalho alheio para parecer superior. Ainda bem que eles souberam responder com toda a classe (e o deboche necessário também). Amaury destacou uma dúzia de cenas marcantes de Ramiro e Kelvin que contestam veementemente qualquer teoria de que o casal seja apenas “alívio cômico”. A expressão virou até chacota nas redes.
Bem dizem que quem fala o que quer, ouve o que não quer… E a verdade sempre aparece. Mas lembrem que não dá para recolher todas as penas que o vento espalhou. Por isso, palavra é coisa a ser usada com responsabilidade e cuidado. Palavras podem ser como fogo: podem aquecer e salvar uma vida, ou queimar e destruir. Depende de quem usa e como são usadas.