A decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), de derrubar a suspensão da lei que instituiu o modelo de escola cívico-militar em São Paulo pode ter reflexos no Rio Grande do Sul. Em Gravataí, hasteou-se a bandeira para o prefeito Luiz Zaffalon (PSDB) colocar em prática o que estava em seu plano de governo: a transformação de mais duas escolas municipais em cívico-militares.
A decisão de Gilmar atendeu a recurso do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). O relator do caso também submeteu a decisão à análise do plenário do STF. O despacho cassou a liminar do desembargador Luiz Antonio Figueiredo Gonçalves, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que havia suspendido o modelo em agosto.
A medida do ministro não avalia a constitucionalidade da lei, para o que ainda não há prazo conhecido para acontecer.
O ministro entendeu que a Justiça paulista invadiu a competência do STF ao decidir sobre o assunto, também levado à corte.
A lei que instituiu as escolas cívico-militares também é questionada no Supremo em uma série de ações – uma delas do CPERS, e aí resta o reflexo da decisão no RS e em Gravataí.
O CPERS e a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) entraram, em julho, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 7682) para barrar a regulamentação das escolas cívico-militares no RS – e também obtiveram liminar suspendendo os efeitos da lei.
Em junho de 2023, o presidente tinha encerrado o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares do Ministério da Educação, desencadeando a aprovação de leis estaduais recriando o modelo, como aconteceu em abril de 2024 no Rio Grande do Sul, com o aval do governador Eduardo Leite (PSDB).
E, em 13 de agosto, a Advocacia Geral da União (AGU) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um parecer declarando o Programa das Escolas Cívico-Militares no Rio Grande do Sul inconstitucional. De acordo com o chefe da AGU, Jorge Messias, a Lei Estadual 16.128, promulgada em maio de 2024, adentra indevidamente na seara de competência da União.
O ponto considerado inconstitucional por aqueles que questionam a medida é o de que a militarização de uma escola civil não está prevista na LDB (Lei de Diretrizes e Bases) ou em qualquer outra legislação federal. Por isso, estados e municípios não teriam autonomia para criar seus próprios modelos.
Esse foi o entendimento dos ministros do STF ao definir a inconstitucionalidade de iniciativas locais sobre o ensino domiciliar, por exemplo. Nesse caso, o Supremo não considerou que a modalidade fere a Constituição, mas que sua aplicação é de competência legislativa exclusiva da União.
GravataÍ tem hoje a Murialdo, primeira escola cívico-militar do Brasil, onde foram investidos R$ 4 milhões nos dois primeiros anos de atendimento a 700 alunos. São 35 professores e 3 policiais militares aposentados, que não precisam ter capacitação alguma para lidar com crianças e adolescentes.
Além de estar no plano de governo apresentado na campanh de 2024, a criação de mais escolas no modelo idealizado pelo bolsonarismo foi promessa de Zaffa em encontro com o ex-presidente Jair Bolsonaro; leia em Zaffa almoça com Bolsonaro e promete mais escolas cívico-militares em Gravataí; Da boina à medalha do ‘imbrochável, incomível e imorrível’.
Em entrevista exclusiva ao Seguinte: após a eleição – SEGUINTE TV | O que esperar do governo Zaffa 2? O prefeito reeleito responde; Assista à entrevista de 1h – o prefeito confirmou o interesse em implantar o modelo em duas escolas, em regiões periféricas como a Vila Rica e na Morada do Vale, mas disse ainda observar o andamento das ações judiciais.
Assista à fala de Zaffa a partir do minuto 20:15 e, abaixo, sigo.
Lá vem textão. Serei repetitivo, como em artigos anteriores.
Civil de nascença, apelo aos defensores do modelo para que me perdoem a crueza, mas reputo são escolas militares ‘fake’ – ao menos naquilo que se construiu no imaginário popular. É uma constatação que não cabe apenas na Murialdo, e sim em todas as 202 escolas que aderiram ao modelo no Brasil desde o governo Bolsonaro.
Fato é que as escolas cívico-militares nada têm a ver com os colégios realmente militares, mantidos pelo Ministério da Defesa ou pelas PMs.
O programa lançado pelo ex-presidente em 2019 consiste na administração compartilhada de escolas públicas, estaduais ou municipais, entre civis e militares da reserva, sejam egressos das Forças Armadas ou das PMs.
Alguns depoimentos reforçam meu argumento.
– Não se explicitou para a população a diferença entre o modelo proposto e o implementado – já alertou à GZH a professora associada e vice-diretora da Ufrgs, Aline Cunha.
Ao site, a pesquisadora sobre a militarização da educação, Iana Gomes de Lima, que é professora adjunta da Faculdade de Educação da Ufrgs, também estabelece diferenças: na escola pública não é necessário passar por um processo seletivo difícil para ingressar, o que pressupõe que alunos dos colégios militares tenham melhor avaliação:
– O programa é muito calcado nessa ideia de que as escolas cívico-militares terão a qualidade dos colégios militares, mas a gente sabe que isso é totalmente falso, porque a gente está falando de escolas públicas que são plurais, pra todos e pra todas, e que vão seguir tendo um investimento muito pequeno. O próprio salário dos professores de colégios militares é muito maior do que o de docentes de escolas públicas.
Aline Cunha também alertou para a militarização da escola.
– O que se quer alcançar com o sujeito na educação é diferente do que se quer na prestação de um serviço militar. Esse paralelo é, na sua origem, equivocado. No âmbito militar, qualquer comportamento civil é considerado rebeldia, subversão, uma concepção de educação que nós buscamos superar na abertura democrática, com a Constituição de 1988 e, sobretudo, na Lei de Diretrizes e Bases, em 1996 – disse.
Já Iana observou ainda que os militares que atuam como monitores não passaram por capacitações para trabalhar em escolas, o que acaba gerando conflitos e divergências de entendimento sobre o que é disciplina:
– Todo professor deseja uma turma respeitosa, mas a ideia de disciplina que construímos junto com alunos e alunas é pautada em princípios muito diferentes dos militares. A gente quer que eles e elas entendam que o que estão fazendo envolve respeito, pluralidade, diferença e coletividade, e não que façam isso por medo ou por uma questão autoritária.
Mais duro é o jornalista Reinaldo Azevedo: “a rigor, o que há de fato é um gigantesco cabidão de empregos para militares da reserva fazerem um bico, atuando como bedéis. Sim, acreditem: a sua função quase sempre se resume a ‘manter a disciplina’ e a dar pitaco aqui e ali na gestão”.
Ao todo, o programa empregava 892 militares, com salários que vão de R$ 2.657 – para terceiro-sargento – a R$ 9.152, quando coronel. Os ganhos se somam ao que recebem das respectivas Forças.
“Fazem um bico nos estabelecimentos de ensino e têm, na média, um salário maior do que o dos professores. A ‘eficácia’ do programa se limita à adoção de uniforme (às vezes), ao perfilamento de estudantes para cantar o Hino Nacional em datas específicas e à cara feia”, considera.
O custo foi caro para o MEC: em 2022, R$ 64,2 milhões; em 2023, R$ 86,5 milhões.
“Só para que se tenha noção do ridículo da ‘revolução bolsonariana’ na educação, há no país em torno de 50 milhões de alunos no ensino básico da rede pública. Como os militares custaram R$ 86 milhões para “cuidar” de 120 mil alunos em 2023, qual seria o custo se o modelo valesse para todos? Ah, a bagatela de R$ 35,8 bilhões só para pagar a milicada”, conclui.
Ao fim, não só por civil de nascença, sou crítico do modelo, que não é utilizado nos países líderes nos rankings de avaliações internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), e conflita com a LDB, que é a ‘Constituição da Educação’.
Sem indicadores devidamente analisados por especialistas, resta um “no meu tempo era bom!”, que quase sempre não passa de memória autobiográfica – o que a psicologia explica.
São aquelas recordações que criamos inadvertidamente, inconscientemente, que não correspondem à realidade, mas que se adequam à história que construímos sobre nossa vida, personalidade e, por consequência, comunidade.
Ainda em março de 2021, quando o prefeito Zaffa aderiu ao programa, descrevi o modelo como uma “mina ideológica”.
Sim, porque defender a escola cívico-militar como garantia de disciplina pode fazer parecer que os professores civis são os responsáveis pela suposta indisciplina.
E há pais que adoram se esconder nessa trincheira. Pesquisa feita pela Secretaria de Educação do Paraná mostrou 75% de aprovação entre famílias de alunos.
Mina ideológica é, também, porque o comparativo do investimento com os resultados no aprendizado não parece justificar um programa nacional – ou, como agora, estadual – em tempos de teto de gastos para educação.
Mas, aprovado nas urnas por 51,3% dos eleitores em 2020, Zaffa tinha toda legitimidade para implantar em Gravataí uma escola cívico-militar, que, goste-ou não, inconstitucional seja ou será, é motivo de comemoração para muitos de seus eleitores.
Associado ao bolsonarismo na eleição de 2024, nada surpreendeu o prefeito ter incluído em seu plano de governo mais duas escolas e ter prometido pessoalmente ao ex-presidente manter o programa.
Reeleito com o mesmo percentual, o que corresponderia a uma vitória em primeiro turno caso Gravataí tivesse dois turnos, as novas escolas cívico-militares devem se tornar realidade nos próximos quatro anos.
Se depois o Supremo declarar inconstitucional, é só tirar os PMs – e a ideologia – do pátio.