3º Neurônio | crônica

DIA DOS AVÓS | A minha vó Maria

Maria Palma Rossetto, minha Vó Maria

Hoje é muito comum avós serem mães, melhores amigas e até companheiras de balada. Minha avó, Maria, acho que sempre foi o que se convencionou chamar avó-avó. Daquelas que parece que sempre tiveram o cabelo branquinho, desde minha primeira lembrança da geada no pátio da casa de madeira da Frei Caneca, passando pelo Parque Minuano, quando moramos porta a porta, até o apê ali na José Juliano.

Menino, antes de nossas tardes de pife, sob um ar condicionado no máximo (molto caldo, sempre reclamava a calorenta), não esqueço o ritual de coçar as costas dela com um pente azul. Era uma branquela muito cheia de alergias. No jogo, ela fingia perder, eu fingia ganhar. Ou então travávamos a pior partida de pife já registrada, perdendo os dois com cumplicidade, até ela me reconhecer como um adversário à altura.

Eu estava ‘grande’ então. Apesar de desde sempre impaciente demais para aprender a jogar Escopa, que no dialeto a vó sempre se referia como Scova, aquele jogo italiano com um baralho diferente onde me atraiam mais as ilustrações das cartas.

Esse sotaque da vó era tão característico que outros guris da vizinhança às vezes ficavam lá embaixo do Edifício Itália, da Álvaro Vieira Guimarães, implicando:

– Rãfael – gritavam.

Assim, com til, imitando a vó.

Eu queria descer e avançar sobre eles, mas ela escondia a chave. Algumas vezes eu chutava a porta, descontroladamente. Mexiam com ela, era como mexer comigo.

Sempre a amei muito.

Por vezes a vó ia ao Beni e trazia garrafinhas de Fanta uva, às quais furava a tampa metálica martelando um fino prego e permitindo sorver por ali, pouco a pouco, um sabor jamais visto em refri algum.

A velha parou um pouco de sair muito longe de casa depois que atropelou um carro ao atravessar a Assis Brasil. Piorou o joelho que tanto doía e antecipava a piova.

O quarto, onde ela gostava de passar grande parte do dia sentada na cama costurando panos de prato, estava sempre ao som da rádio Caiçara – ou seria Farroupilha? Além da música, a vó gostava muito daqueles plantões policiais, acho que era Morelli o nome do repórter. Todos os dias ela também botava óculos para ler as páginas policiais de Zero Hora.

Adolescente, por vezes eu dormia lá. Chegava da festa naquela larica da madrugada e a vó levantava para fritar polenta. Não adiantava dizer não. E eram três, quatro, cinco frigideiras. Depois, picolé de groselha em formas metálicas de gelo, de uma poção que ela trazia de Passo Fundo, terra do Ruaro, onde se fabricava o melhor picolé do mundo.

Pois o mesmo tempo por onde me perdi e afastei pela tal vida adulta levou muito dela nos últimos anos. Seu Malmeto (monstro que ela criou para brincar comigo) foi o Alzheimer. A gringa falante, sorridente e comilona silenciou e já era alimentada por uma sonda. A Rainha da Terceira Idade do Clube Comercial vegetava, viva envolta pelo amor e dedicação das filhas, filhos e cuidadoras.

Senti o cheirinho de sempre daquele cabelo fino e macio há duas semanas, quando fui visitá-la. Na terça passada, a vó se foi. Apagou, sentadinha na sua poltrona, junto da família que sempre queria por perto e, para ela, foi o que mais importou em vida.

Agora há pouco li que hoje é o Dia dos Avós e, enquanto engulo as lágrimas, tremo ao digitar e evito os olhares dos amigos aqui no Seguinte:, compartilho essas lembranças que vieram, como a vó dizia, de supetón. Muito mais para revivê-las – e consigo – do que por qualquer outro motivo.

Como essas coisas singelas podem ser tão inesquecíveis, impagáveis, tão nunca mais?

Enquanto peço licença para ir ao banheiro chorar, deixo como conclusão um post feito pela minha companheira Thiane, enquanto o corpinho da vó Maria ainda estava na cama e o atestado de óbito era preenchido na sala:

– Vida efêmera. Pensando sobre esses documentos todos que a família precisa preencher ao perder sua matriarca. Entre o ano de nascimento e de partida há um pequeno traço. Um tracinho. Essa é a nossa vida. A gente precisa fazer algo desse singelo traço. Dar um objetivo, um sentido, nosso melhor.

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