RAFAEL MARTINELLI

Ecovillage ou Ecodesastre? MP investiga licenciamento de loteamento que aterra 36 hectares de várzea do Rio Gravataí

Foto: Coletivo Mato do Julio

Os dados são alarmantes e a realidade, visível: 36 hectares da vital várzea do Rio Gravataí, em Porto Alegre, estão sendo soterrados por 9,4 milhões de metros cúbicos de aterro para dar lugar ao loteamento Ecovillage. Como revelou a jornalista Bettina Gehm em reportagem para o Sul21, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) investiga possíveis irregularidades no licenciamento concedido pela Smamus (Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade). Enquanto isso, as máquinas avançam, e os riscos ambientais e humanos se acumulam tão rápido quanto o entulho.

O empreendimento, da empresa Ábaco Urbanizadora, não se trata de um simples projeto imobiliário. É uma agressão direta a um ecossistema crítico. As várzeas, como bem explica o biólogo Paulo Brack (UFRGS), citado na reportagem, funcionam como “esponjas naturais”. Absorvem o excesso das águas do rio em períodos de chuva, amortecendo enchentes e protegendo áreas habitadas. Impermeabilizar 36 hectares dessa região é como remover um órgão vital do corpo hidrológico da região metropolitana. As consequências, alerta Brack, são inevitáveis e graves: “essas chuvas rapidamente vão se transformar em inundações”.

O alerta não é teórico; já ecoa na realidade. O vereador Leonardo da Costa (PT), do Coletivo Mato do Júlio (Cachoeirinha), aponta para evidências concretas: a água na ponte de Cachoeirinha subiu mais rápido durante as chuvas de junho. Imagens de drone, citadas na reportagem original, mostram claramente o contraste entre a área aterrada, com menos água acumulada, e as várzeas preservadas ao redor, alagadas. A água, deslocada pela ocupação, já busca novos caminhos – muito provavelmente em direção às casas de quem menos pode suportá-la.

O processo de licenciamento pela Smamus, concedido em março de 2023, levanta sérias dúvidas. A secretaria defende o “trâmite regular”, mas o Coletivo Mato do Júlio aponta uma manobra preocupante: a fragmentação do licenciamento. Uma licença para o aterro maciço de inertes (entulho) e outra para o loteamento propriamente dito. Essa separação artificial pode ter mascarado a verdadeira inviabilidade do projeto. Como um loteamento poderia ser viável sem um aterro colossal justamente em uma área de preservação permanente? O questionamento do Coletivo ao MPRS é direto e necessário: as medidas de compensação propostas são sequer capazes de mitigar os impactos futuros?

O risco é regional e colossal. A Bacia do Gravataí abrange nove municípios e mais de 1,3 milhão de habitantes. O aterro na várzea em Porto Alegre não é um problema localizado; é uma bomba-relógio hidrológica para toda a região metropolitana. Pior ainda: os futuros moradores do “Ecovillage” podem se tornar as primeiras vítimas do desastre que sua própria casa ajudou a criar, quando as águas, sem a barreira natural da várzea, invadirem com força redobrada.

A investigação do Ministério Público é urgente e bem-vinda. Deve apurar a fundo se a legislação ambiental foi respeitada, se os estudos de impacto consideraram realisticamente o risco de inundações amplificadas e se o licenciamento fragmentado serviu para burlar a real magnitude do dano. A fala do professor Brack ecoa como um veredito técnico inquestionável: “Esse tipo de aterro não deveria ter sido permitido”.

Enquanto a Ábaco Urbanizadora se mantém em silêncio e as obras prosseguem, a natureza responde: a água sobe mais rápido. Aterrar a várzea do Gravataí é aterrar nossa resiliência ambiental, nossa segurança coletiva e o futuro sustentável da região. Paralisar as obras imediatamente, até a conclusão rigorosa das investigações, não é apenas uma demanda ambientalista; é um imperativo de sobrevivência urbana. O preço da “ecovila” pode ser a inundação de milhares. Este é um risco que Porto Alegre, Cachoeirinha e toda a região não podem, e não devem, pagar.

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