3º NEURÔNIO

Eliane Brum: “O Brasil hoje é a periferia da Amazônia”

Eliane Brum na Amazônia | Foto Lilo Clareto | Gama

Para jornalista e escritora, estamos em uma guerra para salvar a Amazônia e evitar que se chegue ao ponto de não retorno. Contra a floresta, estão o tempo e uma mentalidade negacionista, extrativista e colonialista. Recomendamos a entrevista de Eliane Brum para Isabelle Moreira Lima, publicada pela Gama


A Amazônia é o centro do mundo e vive problemas urgentes e, se não entendermos isso e agirmos rapidamente pela sua preservação, vamos pagar um alto preço com a nossa própria vida. A afirmação parece catastrófica, saída de um filme sobre desastres naturais, mas segundo a jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum, ela é absolutamente precisa. Quem ainda não entendeu esse momento de emergência e que estamos em uma guerra — contra a destruição da natureza e contra o relógio — é negacionista.

Brum está lutando. Sua principal arma hoje se chama Sumaúma, um portal de jornalismo lançado no ano passado e que tem como temática o “centro do mundo”, como ela se refere à floresta e à região onde vive desde 2017. Naquele ano, mudou-se para Altamira (PA), uma das cidades mais violentas do país desde que começou a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no alto do Xingu. No livro “Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo” (Companhia das Letras, 2021), ela mescla relato pessoal à investigação e denúncia para contar a quem está longe o que é a Amazônia, porque ela é tão importante para a sobrevivência do planeta e os perigos que ela sofre e, consequentemente, pelos quais nós passamos hoje.

– O capitalismo alienou tanto as pessoas do seu próprio corpo que perdemos o nosso instinto de sobrevivência. Se ainda o tivéssemos, estaríamos todos lutando para barrar o aquecimento global que está matando a nossa casa-planeta. Nós temos um lado nessa guerra, na linha de frente, no campo do jornalismo, como aliados dos povos-natureza – afirma Brum na entrevista a Gama.

Com mais de três décadas na reportagem, Brum teve a obra jornalística contemplada em 2021 com o prêmio Maria Moors Cabot, um dos mais importantes do mundo. Foi o seu portal, Sumaúma, que denúnciou a crise Yanomami no primeiro mês do governo Lula. Além de “Banzeiro”, tem outros sete livros publicados sobre diferentes assuntos, mas sempre com o olhar voltado para os direitos humanos.

Na entrevista que você lê abaixo, fica claro que a jornalista segue hoje um raciocínio mais distante do que ela chama de “pensamento não indígena”. Na Amazônia, tudo está conectado e, para salvá-la, a lógica tem que ser a mesma, muitas ações são fundamentais e sem hierarquia de importância: barrar o desmatamento e reflorestar, recuperar os rios contaminados, expulsar o garimpo, preservar os territórios indígenas, barrar a sede pelo petróleo, cuidar dos povos da floresta.

– Não dá para fazer escala de valores. Todas essas questões estão conectadas e são todas emergenciais – afirma.

E precisamos correr, ela diz, ou o mundo inteiro e todas as novas gerações terão perdas irreparáveis.

G | Você escreveu que “a esquerda que Lula representa acredita que o tempo ainda está sob controle humano” e cita a mentalidade pró-petróleo. Existia uma expectativa muito grande na mudança de governo para a preservação e recuperação da Amazônia. Passados oito meses, o que dá pra dizer? Você escreveu também sobre negacionismo progressista, o que isso significa exatamente?

Eliane Brum | Negacionismo Progressista foi uma expressão que o Gustavo Petro, presidente da Colômbia, usou para falar de gente que faz o discurso da transição energética, mas que continua explorando o combustível fóssil. Ele tinha uma proposta de fazer um acordo suspendendo a exploração de petróleo na Amazônia, que não foi adiante. Achei muito aguda essa observação dele. Mas é importante dizer que tínhamos um governo fascista, genocida, que tinha como principal projeto a destruição da floresta para a apropriação privada, inclusive as terras indígenas protegidas. A gente estava no horror. Agora, é inteiramente um outro momento. O que não quer dizer que a gente não enxergue e não aponte as contradições. As pessoas têm dificuldade com o jornalismo, eu percebo isso muito nos comentários nas redes quando criticamos posições do atual governo. Mas o papel do jornalismo é justamente investigar, apurar, apontar as contradições e dar elementos para qualificar os argumentos e ampliar a participação das pessoas no debate público . Um governo democrático espera e deseja que a imprensa o fiscalize e o critique – de forma justa e responsável, é claro – porque isso o ajuda a governar melhor.

G | E como essas contradições se dão hoje no governo em relação à Amazônia?

EB | O Lula se elegeu com uma frente ampla e tem um governo que tem desde Marina Silva, que é talvez a principal ativista, pensadora e intelectual climática no Brasil, até predadores da Amazônia, além de um Congresso completamente hostil, ainda pior do que o de Bolsonaro. Lula, assim como grande parte da esquerda, ainda tem conceitos e propostas no século 20. Ele tem essa ideia de que é possível ter controle do tempo e continuar explorando o petróleo, quando sabemos que os combustíveis fósseis nos trouxeram até a mutação climática. Lula fez um discurso de campanha e de posse ecologicamente correto: a Amazônia e a natureza estavam no centro. Mas, ao mesmo tempo, nesses primeiros seis meses, a grande discussão nessa área foi a exploração de petróleo na bacia da Foz do Amazonas. Como é que nesse momento da história, do aquecimento global, do nosso atual desafio, dá para juntar petróleo e Amazônia na mesma frase? Um pouco antes da Cúpula da Amazônia ele disse que as pessoas da Amazônia podem sonhar com a exploração de petróleo. Esse é o grande drama da geração da Greta Thumberg, dos ativistas das novas gerações: a vida deles está na mão de pessoas que entendem, mas não entendem. É aterrorizante pertencer a essas jovens gerações, porque a sua vida está sendo decidida por pessoas que não entenderam ainda em que mundo estão vivendo. Mas sempre deixando muito claro que o melhor que a gente tem é o Lula. São muitos governos dentro do governo e temos partes resistindo, como a Marina Silva e a Sônia Guajajara.

G | A questão do petróleo é hoje tão grave quanto o desmatamento? Qual o problema mais urgente a ser enfrentado pela região hoje?

EB | Todas essas questões estão conectadas e são todas emergenciais. Se a Amazônia chegar ao ponto de não retorno, quando a floresta já não consegue se regenerar e regular o clima, as perspectivas das novas gerações de humanos e não humanos são muito ruins. Já estamos vivendo num planeta mais hostil do que a gente vivia há dez anos. Estamos vivendo muito mais eventos extremos, já há uma migração de refugiados climáticos, as coisas estão muito aceleradas e, neste ano, particularmente, parece que algo está ainda pior. Não é que a gente tenha escolha. O problema são os governantes acreditarem que é uma escolha não desmatar ou não explorar petróleo. Não existe essa escolha, a não ser que a escolha seja pela autoextinção.

G | Mudou a disposição ao combate ao desmatamento ilegal e à imposição de limites ao legal também?

EB | Os números mostram que o desmatamento na Amazônia diminuiu cerca de um terço nesse semestre, comparado ao mesmo período do ano passado. É uma boa notícia, mas a situação é tão dramática que é pouco. Não é suficiente só barrar o desmatamento. Precisaríamos já estar reflorestando, que é algo complexo. Há todas essas ameaças em curso no Congresso, as forças predatórias já se articulam para voltar ao poder em 2026, vivemos uma guerra, que é uma guerra movida contra a natureza. Dada a desproporção das forças, essa guerra se assemelha mais a um massacre para os povos-natureza e seus aliados. Tudo indica que o El Niño vai acentuar e acelerar ainda mais a mutação climática neste e nos próximos anos. Tudo isso acontecendo e o principal debate acontece em torno de abrir ou não uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia. É desesperador, é de uma precariedade abissal. Uma total falta de compreensão sobre o momento histórico que vivemos.

G | E a pressão internacional? Eles estão olhando pra isso?

EB | Em Sumaúma, a nossa premissa, é que estamos aqui porque acreditamos que o centro do mundo é onde está a vida — e não onde estão os mercados. É muito evidente que o Brasil hoje é a periferia da Amazônia. O Brasil só tem relevância externa, não pelo agronegócio, mas pela Amazônia. A vida depende da vida da Amazônia. Sem contar os outros biomas riquíssimos que estão no Brasil e que também estão sendo destruídos, como o cerrado. A destruição do cerrado está imensa e também é muito muito preocupante, mas tem todo o interesse internacional. Temos falado muito de garimpo ilegal, mas precisamos falar sobre a mineração legal. As grandes mineradoras transnacionais de países como Noruega, Canadá, Reino Unido, assim como a Vale, bem conhecida como autora dos dois maiores crimes ecológicos da história do Brasil, estão atuando na Amazônia como máquinas de destruição e de contaminação. Precisamos falar muito mais sobre isso. Para onde vai a madeira que sai daqui? E o ouro, a carne, a soja, o minério? Tudo isso faz parte de discutir o papel dos outros países na conservação da Amazônia. E precisamos discutir o mercado de carbono, que está fincando bandeirinhas na floresta.

G | Mas quem denuncia então? Só órgãos de imprensa e ativistas? Para o governo brasileiro está tudo bem?

EB | Para partes do governo brasileiro não está tudo bem, para outras partes está muito bem.

G | Voltando para a Cúpula da Amazônia, Sumaúma também mostrou que o presidente Lula não recebeu o cacique Raoni para o encontro. O que essa negativa representa?

EB | Essa é uma boa pergunta para o Lula. Há uma simbologia importante. O Raoni sobe a rampa com o Lula no 1º de janeiro também com outras pessoas representantes de minorias numa mensagem poderosa de que era outro momento do Brasil depois de quatro anos de fascismo. Mas a imagem precisa ser bancada a cada dia. Raoni convocou outros dois encontros e Lula não foi. A justificativa foi uma questão da saúde, mas Lula estava no casamento do senador Randolfe Rodrigues (sem partido, AP), que se mostrou um defensor da exploração do petróleo na Foz do Amazonas e foi um dos primeiros da atacar a Marina Silva pela negativa do Ibama com relação à exploração. Então são escolhas políticas e, na política, as imagens importam muito. Lula escolheu não estar num evento que reuniu dezenas de lideranças indígenas e centenas de indígenas. O Raoni é a maior liderança indígena no Brasil, mas o Lula escolheu estar no casamento do Randolfe. Foi uma escolha e escolhas dizem e significam. E, agora, de novo, o Raoni ficou cinco horas esperando. Deixar alguém esperando também é um recado. Precisamos entender esse recado e mostrar o que está acontecendo.

G | A Sumaúma revelou no começo do ano a crise humanitária dos Yanomami, que repercutiu muito em toda a grande imprensa. O governo mostrou uma resposta imediata. Passado esse tempo, como está a atenção do Brasil para essa questão?

EB | Naquele momento, quando a gente denunciou que 570 crianças com menos de cinco anos tinham morrido por causas evitáveis durante o governo Bolsonaro e Lula foi com parte do governo à Boa Vista, isso foi um gesto muito importante; é o que um governo precisa fazer. Tem um combate ao garimpo no território, tem uma atuação sanitária, mas está muito longe de ter uma situação minimamente digna, como o [líder Yanomami] David Kopenawa tem denunciado, no território Yanomami. Essas são ações emergenciais e, por mais difíceis que sejam elas, como combater o garimpo, colocar equipes de saúde, elas ainda são a parte mais fácil. Esses rios estão contaminados por mercúrio, talvez por cem anos. Como é que se recupera o modo de vida, se não dá para beber água, não dá para se banhar, não se pode comer peixe? É uma floresta contaminada. Sem falar no garimpo, no genocídio, nas doenças, na subnutrição e em tudo o que está acontecendo. E tem algo ainda mais difícil e subestimado que é a cultura. Como ficam aqueles adolescentes Yanomami que, no espaço de meses, viviam como seus ancestrais e, de repente, estão cheirando cocaína e prostituindo suas irmãs? A Marina Silva, quando eu a entrevistei meses atrás, falava na cultura como “DNA da alma”. A extrema direita entendeu muito bem isso: a forma mais eficaz de destruir a natureza, abrir a floresta para exploração predatória e para a apropriação privada da floresta, do cerrado e de todos os biomas, é a destruição da cultura dos povos da floresta, dos povos-natureza. A extrema direita trabalhou muito fortemente nisso. É por isso que hoje a gente tem as situações mais graves nos territórios Yanomami, Kayapó e Munduruku. Parte das populações indígenas desses territórios são favoráveis ao garimpo, estão trabalhando com os garimpeiros. Em Sumaúma, entendemos que a crise climática é determinada pelas questões de gênero, de raça, de classe e também de espécie.

G | Pode explicar isso melhor?

EB | No “Banzeiro”, o meu livro, eu falo na floresta como uma mulher. Ela passa pela mesma lógica da violação do corpo das mulheres, do patriarcado, e da destruição. A floresta sempre foi tratada pelos colonizadores e invasores como um corpo para a exploração, em que se explora, arranca, transforma, converte em objeto e se tira tudo dele. É a mesma lógica da violação do corpo das mulheres. Nesse sentido, a resistência hoje, e não só na Amazônia, mas em todos os biomas, é a das mulheres. Não é à toa que a gente tenha no governo a Sônia Guajajara como a primeira ministra, a Joenia Wapichana como a primeira presidenta da Funai a Célia Xakriabá (PSOL-MG) como a deputada mais importante. São todas as mulheres. Não é por acaso, não é coincidência: a resistência tem gênero.

G | O ataque também tem gênero?

EB | Também tem gênero. Não é do mesmo pensamento branco, europeu, patriarcal, masculino, machista, binário que criou a mutação climática que vamos sair dela. E nem pelo discurso colonialista, da floresta a serviço dos humanos, de que “é necessário proteger a floresta porque a floresta presta serviço, porque ela tem uma utilidade”. Se não tivesse uma utilidade, poderia ser destruída? Os mesmos que destruíram a floresta são aqueles que convertem a floresta num ativo econômico. Já sabemos aonde esse caminho leva.

G | Mas essa mentalidade está muito arraigada e isso deve dificultar muito o tipo de trabalho que você faz. De onde vem a energia para traduzir a mentalidade da floresta para as pessoas e amplificar esse esforço?

EB | Eu entendo que a gente está numa guerra e, na guerra, não se escolhe estar ou não estar. Dizer “não, eu não estou nessa guerra” não vai mudar o fato que ela existe. A guerra está acontecendo. E aí, ou se luta, ou se espera que a guerra nos mate. Prefiro lutar porque sinto que tenho responsabilidade com as gerações para quem a gente está deixando esse mundo arrasado. E não só as humanas, mas as não humanas, porque são vitais. Para mim, não lutar não é uma escolha possível. Para mudar a mentalidade, precisa ter tempo e nós não temos esse tempo que é necessário. As coisas estão acontecendo de forma acelerada e as pessoas estão em um negacionismo generalizado. Aceitar que a crise climática foi produzida por ação humana, uma obviedade científica, já é fácil, não faz de ti um não negacionista. O que te faz um não negacionista é viver segundo a emergência. E isso, a maioria não está vivendo. O capitalismo alienou tanto as pessoas do seu próprio corpo que perdemos o nosso instinto de sobrevivência. Se ainda o tivéssemos, estaríamos todos lutando para barrar o aquecimento global que está matando a nossa casa-planeta. Então como recuperar o instinto de sobrevivência? Eu tenho sentido, quando eu escrevo, é como se eu enviasse cartas, e essas cartas fossem sempre extraviadas. É como se elas batessem numa parede, que é a alienação das pessoas. Mas a gente precisa continuar escrevendo e para isso Sumaúma existe. Nós temos um lado nessa guerra, na linha de frente, no campo do jornalismo, como aliados dos povos-natureza. Eu sempre repito uma frase do Eduardo Viveiros de Castro, que diz que o fim do mundo para os indígenas foi em 1500, quando chegaram os invasores. Agora, talvez eles possam nos ensinar a viver depois do fim do mundo, apesar de tudo o que fizemos contra seus corpos. Aqui, onde eu vivo, a Transamazônica foi o fim do mundo. Belo Monte foi outro fim do mundo. Mas a vida resiste e nós resistimos na luta e na alegria de lutar fazendo comunidade.

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