CARLOS WAGNER

Enchentes de junho despertaram no gaúcho o medo que se repita maio de 2024

Na terceira semana de junho as chuvas voltaram fortes ao Rio Grande do Sul. Desta vez, o maior estrago trazido pelas cheias foi para o emocional dos gaúchos, que descobriram que muitas, e algumas estratégicas, obras que deveriam minimizar os danos causados pela enchente de maio de 2024 ainda não foram concluídas. E das que já estão prontas, não se tem garantia da qualidade dos reparos realizados. A imprensa se saiu bem na cobertura das enchentes de junho fazendo o factual, como as águas invadindo as casas. Mas segue não entendendo como as máquinas administrativas municipal, estadual e federal funcionam no caso de consertar os estragos causados por eventos climáticos severos. Esta falta de conhecimento impede que o repórter bata na porta da autoridade certa para pedir explicações sobre os atrasos. Não é uma coisa que se aprende do dia para a noite. Sou testemunha disso. Tenho 75 anos e faço reportagens investigativas há quatro décadas. Em 2013, fiquei um mês dentro da prefeitura de Santa Maria tentando entender os motivos que resultaram no incêndio que, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, consumiu a Boate Kiss, uma tragédia que matou 242 pessoas e feriu 636. O número de leis, portarias e outras legislações que organizam o serviço público é um cipoal. Vamos conversar sobre a volta das enchentes.

Mas antes de seguir em frente vamos obedecer ao manual do bom jornalismo e contextualizar a nossa conversa. Não podemos partir do princípio de que todos sabem do que estamos falando. Vamos lá. As enchentes de setembro e novembro de 2023, somadas à de maio de 2024, atingiram 478 dos 497 municípios gaúchos e deixaram um rastro de 185 mortos e 25 desaparecidos – há centenas de reportagens sobre o assunto na internet. A cheia de maio do ano passado foi devastadora para Porto Alegre, superando a maior já registrada até então na cidade, a de 1941, quando as águas do Guaíba subiram 4,73 metros. No ano passado, o Guaíba subiu 5,35 metros e colapsou o sistema contra cheias da Capital, deixando submerso boa parte da área central, a Estação Rodoviária e o Aeroporto Internacional Salgado Filho. Claro, os números das enchentes de junho de 2025 são bem mais modestos. Atingiu a Região Metropolitana de Porto Alegre, que é formada 34 municípios onde vivem 4,3 milhões de pessoas. Também choveu forte na região de São Sebastião do Caí, no Vale do Rio Caí, formada por 19 cidades onde moram 240 mil pessoas. Os números dos estragos ainda estão sendo apurados. A última atualização: quatro pessoas morreram, 7.390 estavam fora de casa, 125 cidades foram atingidas, 20 decretaram situação de emergência e Jaguari, que teve a sua maior enchente em 30 anos, calamidade pública (a cidade fica no Vale do Rio Jaguari, formado por nove municípios onde vive 121 mil habitantes). O inverno começou oficialmente na última sexta-feira (20) e ainda vem muita chuva por aí. Terminada a contextualização, vamos a nossa conversa.

Lembro ao leitor que na abertura do texto alertei que as chuvas tinham voltado com força ao território gaúcho. E que desta vez o maior estrago foi no emocional da população ao descobrir que os consertos dos estragos das cheias do ano passado estão com problemas. Há uma fileira de dificuldades com as obras. Vou começar pelo que considero o maior de todos, que é o sistema contra as cheias de Porto Alegre. Ele foi construído nos anos 70 e se estende por 68 quilômetros, formados por diques, o Muro da Mauá (uma parede de três metros de altura com 2,4 quilômetros de extensão e 14 comportas que são fechadas na subida das águas para proteger a área central da cidade) e 23 estações de bombeamento de água. O sistema funciona assim: os diques e as comportas da Mauá mantêm as águas do Guaíba fora da cidade. E as casas de bombeamento mandam as águas das chuvas para o Guaíba, pelo esgoto pluvial. Tenho repetido esta explicação em vários posts, como o publicado em 28 de maio de 2024: Sistema contra as cheias de Porto Alegre é velho, mas funcionava. Precisa ser consertado. Como se dizia nos tempos das máquinas de escrever nas redações, vou repetir esta explicação até gastar as pontas dos dedos de tanto escrever. Os reparos estão sendo feitos no sistema contra as cheias. Mas a qualidade destas obras garante o pleno funcionamento de diques, comportas e, principalmente, das casas de bombas? Estas têm demonstrado problemas, como a ligação automática de geradores quando falta eletricidade. Para impedir a invasão das águas em trechos dos trilhos do metrô de superfície, o trensurb, durante as cheias de junho, a prefeitura de Porto Alegre depositou no cais do porto 200 sacos de argila e areia. Caso as águas do Guaíba avançassem, os sacos deveriam bloquear as comportas do Muro da Mauá que estão sendo consertadas. Pergunto. Estas comportas que estão sendo consertadas ficam na área central da Capital? Já não era para estarem prontas? Lembro que o centro de Porto Alegre é o coração do Rio Grande do Sul. Se a água voltar a invadir aquela região, o Estado para, como aconteceu em 2024. Lembram-se? As cheias de junho também paralisaram estradas, destruíram pontes e causaram outros estragos à infraestrutura do território gaúcho. Toda a história foi contada pela imprensa diária.

Para arrematar a nossa conversa. Na minha carreira de repórter já fiz e continuo fazendo muitas matérias complicadas e algumas perigosas. Com o tempo a gente vai aprendendo a lidar com estes assuntos. Reconheço que o desafio colocado na nossa frente pelo “novo normal do clima” é grandioso e complexo. Lidar com este tipo de reportagem exige de nós repórteres uma revisão da maneira de fazer jornal. Por quê? Somos jornalistas, as únicas pessoas com que a população conta para bater à porta das autoridades e pedir que expliquem como vão resolver os problemas. E para fazermos as perguntas certas, nós precisamos saber como a máquina administrativa funciona. Lembro aqui o seguinte. É do jogo da disputa política as autoridades “atirarem a culpa no colo do adversário”. Isso não é problema. Desde que saibamos quem responde pela história e como fazer as perguntas certas. Vou repetir o que já disse. Não é fácil entender como as coisas funcionam nas administrações públicas. Mas também não é impossível aprendermos.

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