Para a socióloga Ariadne Natal, ação se baseia na ideia equivocada de que agressão é dissuasiva. recomendamos e reproduzimos a entrevista dada ao El País
“Eu sou ladrão e vacilão”. As cinco palavras, tatuadas à força na testa de um jovem de 17 anos suspeito de tentar roubar uma bicicleta em São Bernardo do Campo, se espalharam nas redes sociais e grupos de WhatsApp. Mesmo em um país que lidera o ranking mundial de linchamentos e homicídios no mundo, acostumado às cenas de violência e a ver a população fazer o que considera ser justiça com as próprias mãos, a tortura do adolescente provocou repulsa – mas também admiração.
Para alguns, o tatuador Maycon Wesley Carvalho dos Reis e o vizinho Ronildo Moreira de Araújo, que registrou o crime em vídeo, são exemplos de “cidadãos de bem cansados de sofrer nas mãos da bandidagem”. Os dois foram presos preventivamente pelo polícia.
Para Ariadne Natal, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, este tipo de ação parte do pressuposto de que o Estado “é ausente e não pune o suficiente”.
– Existe uma percepção de impunidade, de que há muito crime e o Estado não está punindo o bastante. Mas quando você analisa os números, é precisamente o contrário: as cadeias estão lotadas – afirma.
Após o crime, o coletivo Afroguerrilha organizou uma arrecadação virtual para custear a remoção da tatuagem feita no jovem bem como um tratamento para ele, que seria dependente químico. Já haviam levantado mais de 32.000 reais, o dobro da meta. Posteriormente a Prefeitura de São Bernardo anunciou que iria custear a cirurgia para retirar a tatuagem. Nas redes sociais grupos conservadores indignados com a “vaquinha para ajudar ladrão”, reagiram, e criaram um fundo para custear a defesa dos dois torturadores – arrecadando até o momento pouco mais de 6.000. Ironicamente, em 2011 o pedreiro Ronildo Moreira de Araújo, que gravou a tortura do adolescente, havia sido condenado pelo roubo da bolsa de uma mulher em 2008.
Pergunta. O que motiva este tipo de ação?
Resposta. As pessoas têm uma sensação de insegurança muito grande, é um problema real no Brasil. Elas sofrem, têm medo, são vítimas de crimes ou conhecem alguém que foi vítima, e esse sentimento não pode ser minimizado. Além disso, existe outra percepção na sociedade, que é a de impunidade. Isso faz com que em alguns momentos as pessoas queiram tomar para si o papel que é do Estado, e aplicar uma justiça bárbara. A lógica que alimenta essas ações é a de que, por exemplo, marcar aquele rapaz é uma forma eficiente de dissuadir novos crimes. A discussão não problematiza essa questão. Se eu prendo mais, a consequência é menos crime? Não. Nada aponta para isso, as cadeias estão sempre lotadas. É preciso se pensar outras formas de gastar esses recursos.
Se por um lado o sentimento de insegurança não pode ser ignorado, o problema é o que se faz com isso. Ser vítima de violência de qualquer tipo não dá a ninguém autorização para reproduzir com outros esse tipo de comportamento, mesmo que no calor do momento. Não é uma cultura viável. É preciso propor outra forma de resolução, a sociedade não pode tomar para si esse papel, isso é incompatível com a democracia.
P. Qual o papel das redes sociais nesse caso?
R. Os dois homens que torturaram o jovem de São Bernardo não queriam apenas torturar. Eles queriam humilhar publicamente, queriam fazer da ação uma vingança, para que aquilo não ficasse entre quatro paredes. Levaram para dentro de casa, que é um espaço privado, mas tornaram pública a tortura via a tatuagem, que tem a pretensão de ser permanente, ainda por cima num local de alta visibilidade, como a testa. E fizeram um vídeo. Este é um recurso superpoderoso para tornar aquilo um evento não só local. Na medida em que registram e compartilham, isso se torna uma performance para um público, a tortura do jovem foi feita para ser consumida, seja para a crítica ou para endossar a atitude deles. As redes sociais têm um papel muito importante na estratégia da agressão, ela é parte da estratégia dos torturadores.
P. A sociedade valida este tipo de violência?
R. Muito provavelmente eles pensaram que os espectadores daquela tortura concordariam com eles, e parte da sociedade considera este tipo de ação como sendo válida. Quando fizeram aquilo, e isso é uma marca também dos linchamentos, os torturadores tiveram uma percepção de que não estavam cometendo crime algum, tanto é que nem tentam esconder sua identidade no vídeo.
P. Existe uma questão socioeconômica por trás deste tipo de crime?
R. Existe uma percepção, principalmente nas periferias, que sofrem com a ausência de instituições fortes e uma menor presença do Estado, de que as pessoas precisam resolver seus próprios problemas, diferente dos bairros ricos, onde há um aparato de segurança que acaba “resolvendo” os problemas. A população mais abastada acaba terceirizando e privatizando seu aparato de segurança. Nos dois casos prevalece a ideia do cada um por si: "Ah, o Estado é ineficiente então cabe a cada um resolver seus problemas”.
P. Quais as semelhanças entre este caso de tortura e um linchamento?
R. Este não é um caso de linchamento, mas reverbera alguns dos problemas que já existem no país e apresenta inúmeros paralelos com o linchamento, que é um fenômeno antigo no Brasil, tem algumas centenas de anos. Em comum, por exemplo, está o desejo de fazer aquilo que eles consideram como sendo justiça por conta própria.