Durante quatro dias, para marcar os 256 anos da chegada da última leva de mil índios à Aldeia dos Anjos, o Seguinte: conta a história do embrião de Gravataí. No último capítulo, as privatizações que deram fim ao projeto de aldeamento.
O cacique Poty já não tinha poder. Pinto Carneiro estava morto e, coincidentemente, depois de um desentendimento com Rafael Pinto Bandeira, José Marcelino Figueiredo foi retirado do governo. O contexto territorial do Rio Grande também já era outro. Em 1776, finalmente os espanhóis foram expulsos do território português. Então, preservar os índios como uma garantia contra o aliciamento pelos castelhanos, já não era um plano prioritário. Chegava a década de 1780 com um cenário bem diferente nos arredores da Aldeia dos Anjos.
Quando Antônio José Machado assumiu o posto de comandante da aldeia, recebeu o informe da situação na comunidade do também novo governador, Sebastião da Veiga Cabral, em 1781:
“A população está dividida em parcialidades por causa dos caprichos, ódios e vinganças de seus moradores, composta principalmente por índios bêbados, fujões e preguiçosos”. E seguia, determinando, por exemplo, que as índias deixassem de andar nas ruas com cabelos soltos “parecendo mais com animais do que com gente racional”.
Sim, o preconceito contra os índios nunca deixou de existir, mesmo nos períodos economicamente mais prósperos da aldeia. E esta é uma amostra de que o projeto de assimilação, de fato, não se concretizou como sonhava o Marquês de Pombal. Na tese pombalina, transformando a cultura dos indígenas e assimilando-os, as diferenças e o preconceito acabariam. Ledo engano. A cultura indígena resistiu.
As críticas à política de incentivos públicos à Aldeia dos Anjos implementada por Marcelino também vinham do Rio de Janeiro. Conforme o vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza, “Marcelino gastou muitas somas da Fazenda Real para construção de edifícios destinados a abrigar os índios”.
Sem lideranças, com investimentos escassos, de acordo com o historiador Moacyr Flores, velhas rivalidades voltaram à tona. Nas reduções jesuíticas, houve um processo de “guaranização”. Povos tape, minuano, chaná foram generalizados como guaranis, em uma espécie de acordo, que, na decadência da aldeia, parece ter se quebrado. E este processo facilitou o que viria adiante na economia da Aldeia dos Anjos.
A pressão social sobre a Aldeia dos Anjos, no entanto, parecia mais um artifício para facilitar uma mudança econômica na região. A aldeia, mesmo lucrativa, sempre foi um empreendimento público que deu certo. E chamou a atenção da iniciativa privada. Aos poucos, o patrimônio passou a ser vendido e houve uma debandada da população indígena da região. No início do século XIX, ainda havia registros de algumas poucas famílias junto ao potreiro do Itacolomi, que foi o que sobrou da antiga lavoura dos povos. Se em 1762 estima-se houvesse 3,5 mil índios por aqui, em 1814, não passavam de 300.
Já em 1881 o engenho, a olaria e o potreiro de gado foram arrematados pela Irmandade Santíssimo Sacramento. Dois anos depois, o açougue e a estância foram arrendados.
: Restaram alguns utensílios indígenas no Museu Agostinho Martha após o incêndio. Município atualmente refaz o arquivo da Aldeia dos Anjos a partir da Biblioteca Nacional
Na década seguinte, já praticamente não havia atividades econômicas coletivas na aldeia. Muitas terras eram arrendadas a proprietários locais, com forte pressão de gente graúda como o agora brigadeiro Rafael Pinto Bandeira. Uma queixa de Francisco da Rosa, morador que ocupou uma área junto ao arroio Hilário (na região do atual Passo do Hilário) durante 29 anos, até ser despejado por ordem de Pinto Bandeira em 1792. Neste período, o líder era comandante interino da aldeia que se tornara um grande leilão de terras.
O argumento de Bandeira teria sido o de que Rosa ocupava uma área do potreiro do Itacolomi, para onde os guaranis haviam sido limitados, e portanto deveria ser terra indígena. A terra, em tese teria sido entregue a um guarani, mas se tratava de um dos protegidos do bando e, na verdade, acabou arrendada a um aliado de Pinto Bandeira.
Restava aos índios adaptarem-se. Ou vagarem em busca de outro lugar para se estabelecerem.
As charqueadas eram um bom negócio, e uma portaria de novembro de 1796 concedia licença para Antônio Soares de Paula retirar da Aldeia dos Anjos quantos índios fossem necessários para sua charqueada. No território local, o investimento público mudou seu foco para a Feitoria do Linho-Cânhamo. Era a produção da planta que era base para uma fibra muito resistente, usada em cordas.
A primeira instalação do Linho-Cânhamo foi em Canguçu, mas era um risco. Estava muito próximo do limite com os espanhóis. Logo, a Coroa centrou seus investimentos na Vila Nossa Senhora dos Anjos. Não era coincidência que, em 1798, o novo comandante da vila fosse Antônio José Machado de Morais Sarmento, homem ligado ao negócio do linho-cânhamo em 1798. Alguns índios estavam entre os trabalhadores da feitoria (na atual São Leopoldo).
Era o ocaso da Aldeia dos Anjos. Em abril de 1800, encerraram as atividades do recolhimento das meninas e, no ano seguinte, foi vendido o prédio da Escola de Ler e Escrever, que fora a primeira escola do Rio Grande do Sul.
Em 1803, finalmente, a junta da Real Fazenda terminou com a administração da Aldeia dos Anjos. A Vila de Nossa Senhora dos Anjos já existia e os guaranis estavam dispersos. Seus herdeiros, certamente ajudariam a construir a Gravataí do futuro.
: O Morro Itacolomi marcava a fronteira entre povoados indígenas e, mais adiante, da Aldeia dos Anjos
O que havia antes da Aldeia
Talvez não tenha sido só o argumento dos portugueses que convenceu os guaranis a migrarem até a Aldeia dos Anjos na segunda metade do século XVIII. Para aquele povo, provavelmente, foi o retorno a uma antiga morada temporária. Os poucos estudos arqueológicos da região mostram que há sinais de que a bacia do Gravataí foi ponto de parada dos guaranis na busca do litoral durante muito tempo. Mas eles perderam espaço para os kaingangues, e acabaram empurrados para o interior do território.
É que os kaingangues, entre os séculos XVI e XVII, viraram parceiros de um negócio lucrativo com os bandeirantes que vinham de São Vicente (atual São Paulo). Mantinham um acordo para escambo de índios escravizados. Os alvos eram os guaranis.
Quando o projeto da Aldeia dos Anjos se tornou concreto, os Kaingangues também já não estavam por aqui. Haviam sido empurrados em direção à serra, a partir do alto do Itacolomi por dois fatores: o fim do ciclo do escambo e a chegada dos primeiros colonos no Porto dos Dornelles. As primeiras sesmarias na Aldeia dos Anjos foram povoadas a partir de 1724 por famílias vindas de Laguna, como os Pinto Bandeira.