Como vocês sabem – imagino que vocês colecionem minhas entrevistas e as releiam, quando chove em Macondo –, entrei para o ramo ao entrevistar o Ernani Ssó sobre histórias de terror pra crianças. Mas logo saí da minha área, pra tratar de sexo e outros bichos, de modo que não me surpreendi com o pedido do Ernani de entrevistar Sérgio Fantini. O melhor é que assim pude conhecer Belo Horizonte.
Antes do meu voo – que foi normal, fora uma turbulência sobre Curitiba –, fui pesquisar pra saber quem diabos era Sérgio Fantini. Como se trata de escritor, procurei seus livros e achei alguma coisa apenas na Palavraria, aqui em Porto Alegre, e outras na loja virtual da editora Jovens Escribas. Os livros esgotados, o Ernani me emprestou.
Mas volto a perguntar: quem diabos é Sérgio Fantini? Em resumo, um senhor contista. Depois dos primeiros contos, a ficha caiu: a gente pode encontrar qualquer merda gringa (às vezes com a bênção da academia) em todas as livrarias, pode encontrar resenhas em todos os jornais, pode achar milhares de referências na internet, mas um bom autor nacional muitas vezes nem chega a ser uma curiosidade. Então, se a gente gosta de literatura, deve tomar cuidado, quer dizer, agir como leitor, não como consumidor. Apesar do que dizem os editores, há uma certa diferença entre negócio e literatura.
Em minha opinião nada modesta, trata-se de um crime o anonimato dos dois melhores livros de Fantini: A ponto de explodir (contos) e Lambe-lambe (multigêneros). Não estou aqui clamando por patriotismo e sim contra a mediocridade. Tenho dito.
Sobre A Ponto de Explodir, Ernani escreveu: “Acho que foi Henry Miller que disse que um escritor deve viver como um cordeiro e escrever como um tigre. É mais ou menos o que Sérgio Fantini faz: pessoalmente, é a simpatia. Escrevendo? Um perigo. O texto dele é seco, coloquial, não dá mole para a literatura. As histórias – dramas sem drama, traçados com pudor, com ironia – parecem a maleta do espião: as armas e os segredos vêm sob o fundo falso. Trata-se de diversão para gente grande. Sérgio Fantini confirma o amor da literatura brasileira pelo conto. Neste caso, correspondido”.
Sem mais pelo momento, cordialmente o
Corvo do Poe
Corvo do Poe: Você sempre escreveu e publicou à margem do meio editorial. Não foi por falta de padrinhos – você conhece praticamente todos os escritores brasileiros, até o Ernani Ssó, um desconhecido nada ilustre. Como, por quê?
Sérgio Fantini: Quando eu quis publicar um livro, já vinha fazendo um fanzine com amigos desde 1976, sem pensar se era independente ou outra coisa, até por que não sabia de nada. Quis fazer e fizemos, ponto. Mas para o que viria a ser um livro, livrinho, na verdade, em 1979 tive a inspiração de poetas que vendiam seus livros nas ruas de BH; talvez já tivesse ouvido falar de poesia marginal… Nem me passou pela cabeça procurar editora: o correto seria estar daquele lado – mimeógrafo, nas ruas, junto do leitor…
Em seguida, conhecendo outros escritores, fui entendendo o que existia (gráficas, editoras, livrarias, sebos, eventos, mercado…) e aí, sim, bati o pé por postura ideológica mesmo.
Com o tempo, a literatura foi amadurecendo e eu também, um pouco menos; a postura, um pouco mais. Até Carlos Fialho passar a me editar em 2011, eu estava pronto para eu mesmo publicar meus próximos livros. Por ora, estou hospedado na Jovens Escribas. Foram quatro livros. O romance em processo de escrita ainda não sabe como verá a luz do dia.
Ah, quanto a conhecer muita gente, deixa repetir meu bordão: a melhor coisa que a literatura me deu foi ganhar bons amigos, especiais. O Ernani é um deles.
CP: Tem gente que acha que dá azar falar de livro que está escrevendo. Mas pode me dizer pelo menos o título, se é que já tem?
SF: Sem título ainda. Mas isso do azar nem é pelo azar. É a chance de perder parte do prazer: o romance tem um projeto, um rumo de história e a melhor parte são duas: escrever enquanto crio, criar enquanto escrevo. Se contar o que virá, estarei mentindo; se contar o que já fiz, perco um pouco da surpresa que espero causar. Mas acho que não me arrependerei de informar que o narrador se autoproclama “cronista investigativo”.
Por falar em tarefa, este romance tem um projeto semelhante ao Lambe-lambe: eu estabeleci metas, prazos, fiz listas de personagens etc.
CP: Espera aí. Em textos mais longos você não larga a rédea e deixa o cavalo ir aonde quiser? Precisa de um mapa e tal? Explica melhor isso.
SF: Não chega a ser mapa… São limites.
CP: Desafios, talvez.
SF: No caso do Lambe, decidi que seriam 50 textos, cada um com 2 páginas manuscritas. Mas só pensava no texto ou, para manter a metáfora, só deixava o fotógrafo focar o modelo após escrever “São esses”, só então eu começava a saber o que ele iria falar, qual abordagem… A escrita foi toda, cada um deles, um improviso, como um solista de jazz, que está dentro de um tema, mas faz o que quer na sua vez. Eu sabia que depois disso teria que digitar, reler na tela, imprimir, reler no papel, corrigir na tela, reler… até achar que podia passar a algum leitor crítico.
CP: Como você, outro velho escriba, foi parar na Jovens Escribas?
SF: Carlos Fialho vinha lançar seu livro em BH e alguém me indicou para ajudá-lo nessa produção. Fiz o que sempre faço nesses casos: indiquei local, imprensa, amigos… Ele veio de Natal, teve um ótimo lançamento, curtimos a cidade e ficamos amigos. Em algum momento antes ou depois disso (precisa ver na biografia dele), ele se apaixonou pelo meu A Ponto de Explodir, que lancei em 2008 (independente) e cismou de fazer uma segunda edição. Como os amigos tinham comprado a minha edição, sabia que a dele encalharia, por isso lhe propus o Silas, que saiu em 2011, e o Novella e o Lambe-lambe, nos anos seguintes. Nesse meio tempo fizemos a segunda edição do A Ponto, como ele queria.
Melhor de tudo nessa parceria foi ganhar a amizade de tantas outras pessoas no Nordeste, graças aos lançamentos e eventos da editora.
CP: Bom, num tempo em que os conglomerados dominam, publicar pela Jovens Escribas, uma editora tão pequena, é continuar mais ou menos à margem. O curioso, pra mim, é que teus livros não só são mais bem escritos que muitos lançados pela Record ou pela Companhia das Letras, como são mais divertidos. Conheço outros casos, como o do Jamil Snege, pra citar um exemplo exemplar. Enfim, se as grandes editoras não podem brandir os argumentos de falta de qualidade e de potencial de venda, como é que fica?
SF: Obrigado pelo bem escritos e divertidos. Se eles realmente são assim, é resultado de esforço e me orgulho disso, de conseguir bom texto pelo trabalho e não por inspiração divina.
Tua pergunta me provoca uma reflexão nova, baseada em argumentos já bastante mascados: por que diabos a referência são as grandes editoras? Por que nos importamos tanto com elas? Vários escritores publicados por elas não estão por aí soltando fogos de alegria. E agora, com o advento (estou presidencial hoje) da popularização da internet e da facilidade de se fazer o próprio livro de papel e divulgá-lo, o papel das majors está menos relevante, não? O nó da distribuição, que existe para todos, é menos apertado pra elas, mas vá perguntar-lhes a que preço…
CP: Voltemos à pauta. Você começou na poesia e custou pra encarar a prosa. Como largou a poesia ou foi largado por ela?
SF: São dois movimentos simultâneos, ao longo do tempo, que me fizeram, ou fizeram comigo, realizar esse movimento, essa transposição. Primeiro, a necessidade de um espaço maior pra dizer o que eu gostaria. Achava que a prosa seria mais adequada. E dá-lhe imitar os autores de que eu gostava: Rubem Braga, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta… tudo cronista!
CP: Desconfio que a literatura brasileira se dá melhor na crônica e na poesia. Claro que é complicado comparar, mas, pelo menos pro meu gosto, pra achar contistas e romancistas que tenham alcançado o alto nível de fatura, em seus gêneros, de um Rubem Braga e de um Drummond não é fácil. Desculpa meter a colher assim na tua conversa. Segue o baile.
SF: Mas antes de trocar a valsa, me permita opinar também sobre esse paralelo que você traça entre crônica/poesia x romance/conto: concordo que temos crônicas e poemas maravilhosos que ombreiam com os maiores do mundo, mas acho que há muitos contos também que não fazem feio; ao contrário, estão no mesmo nível dos maiores de qualquer canto. E com certeza há também romances com essa pegada. Acho que você está um pouco crítico demais, não, Corvo?
CP: Pode ser, mas numa terra com crítica de menos…
SF: Mas voltando à minha conversão: por uma imensa sorte, eu tinha autocrítica suficiente para achar o que eu escrevia muito ruim, pois era um pastiche safado, um arremedo de crônica escrita por um moleque que não sabia pra onde apontava o nariz. Joguei tudo fora. Correndo na raia ao lado, na poesia cismei de buscar a síntese máxima, influenciado talvez por Dalton Trevisan, o rigor de Maiakovski, não sei. Essa obsessão me levou a Palpites ltda (1984) e Carapuá (1985), ambos de poemas curtíssimos. Depois deles não tinha mais o que fazer em poesia.
Por coincidência, nesse período, fui apresentado a Bukowski, que me levou à profunda reflexão: “Porra, pode escrever assim? Isso eu sei fazer!”
CP: Acho interessante o caso do Bukowski – ele influencia muitos escritores que acabam melhores que ele. É provável que Bukowski não tivesse repercussão nenhuma se não fosse gringo. Como dizia o Buñuel, ninguém leria Hemingway se ele fosse paraguaio. Hoje, tanto tempo depois, você não sente algo parecido?
SF: Acho que a melhor partida para avaliar o peso do velho safado não é nem se ficamos melhores que ele, mas quem conseguiu se desgarrar do modelito outsider. Há gente que repete o trinômio álcool/sexo/ resmungação na mesma clave, pra usar um termo cult, até hoje. Há um romance muito badalado que não conseguiu me levar além do primeiro capítulo; há autores competentes em outras áreas que, quando fazem contos e poemas, são possuídos pelo espírito de Chinaski e aí, lá vem…
CP: Em A Ponto de Explodir e Novella você tem mais contos em primeira pessoa que em terceira. Mas sei que você é fã da terceira pessoa.
SF: Não sei de onde o senhor tirou isso de que sou fã da terceira pessoa. Eu sou fã do Pessoa e de pessoas…
CP: Acha moleza voar até Belo Horizonte sem parar nem pro cafezinho? Ainda me sinto meio zonzo e isso piorou, agora que você me chamou de senhor.
SF: Mas que corvo sensível. Bom, há algo aí sim pra se conversar. Escrever em primeira pessoa deve ter duas origens óbvias: o vício, a “boca torta” da poesia, o tal do eu-lírico que não fica quieto e quer se mostrar a toda hora e a primeira influência do Bukowski, que tinha um ego maior que um tonel de vinho. Quando me dei conta de que estava preso nessa armadilha, tentei sair e acho que consegui com relativa destreza.
Na construção do Lambe-lambe, percebi como será importante continuar investindo nisso, pra contar as histórias que quero, que não têm nada a ver comigo.
CP: Vamos falar dos últimos livros, todos pela Jovens Escribas. Primeiro, Silas. Dá uma palinha sobre o livro e o personagem.
SF: Silas foi um achado. Assediado por Fialho querendo reeditar o A Ponto de Explodir, tive a ideia de reunir num volume os vários contos que esse personagem protagoniza e que escrevi ao longo de mais de vinte anos. Com isso vi que eu tinha uma biografia quase completa dele: a carta da mãe, escrita em 1985, contando como ele era na adolescência, até chegar a um conto mais recente, Silas, velho, quando ele tem uns 50 pra 60 anos.
CP: Como surgiu o conto Silas, 30 do 2o tempo. É um conto esquisitão e um dos melhores que você escreveu.
SF: Cada conto tem uma história própria, mas este é um caso único, pois é fruto de um sonho. Eu sonhei aquela história praticamente como está no livro, incluindo o nome do personagem. E eu não sou bom pra lembrar dos sonhos, mas esse estava tão nítido que, ainda dormindo, saquei que não poderia esquecê-lo. Repassei a história, já meio acordado, duas ou três vezes, pra fixá-la. Totalmente desperto, repassei mais uma vez. Ok, era só anotar. Mas não anotei nada! Com o passar dos dias, de vez em quando pensava: preciso anotar aquilo, vou acabar esquecendo… Até que uma madrugada, semanas depois, hospedado na casa de amigos em Teresópolis, acordei às 3 horas e resolvi registrar o sonho para passar o tempo – e escrevi a primeira versão do conto. Nele dou mais uma dica de que Silas é negro.
CP: Esse ponto me interessa. Veja, se um personagem é oriental, indígena ou negro, em geral os autores tratam de informar isso logo na primeira linha e de modo direto, sem malícia narrativa alguma. Se é branco, não dizem nada, como se fosse natural o leitor deduzir a brancura do sujeito.
SF: O mote é este: o negro é o diferente. Isso é herança das literaturas onde a maioria da população é não negra. Nós crescemos lendo e aprendendo que o mundo é branco e se um personagem não é, precisamos avisar ao leitor que um alienígena entrou na história. Quando criei o Silas, queria que ele fosse um negro que não precisasse se afirmar como tal; que ele fosse “um ser humano normal”; que pudesse viver suas aventuras e conflitos sem ter que mostrar que foi discriminado, que é contra o racismo, que tem um discurso de luta e, principalmente, que pudesse falar sem usar o estereótipo linguístico que muitas vezes caracteriza o coloquial dos negros e caipiras na literatura. Ele não precisaria ter uma marca; ele poderia ser ele mesmo sem colar um rótulo na testa: sou negro.
Confesso que não tenho retorno disso, não sei se consegui o resultado que queria, ou seja, obter dos leitores empatia com um personagem negro que foi registrado sem as marcas tradicionais já padronizadas pela literatura. No caso deste conto, Ali Ahmud vê um retrato da Josephine Baker e acha que ela é irmã do Silas. Quer dizer, o negro Ali está vendo o Silas e conclui que a foto de uma mulher negra só pode ser da irmã dele.
CP: Segundo, Novella. Tenho a impressão de que teu texto chegou ao máximo de naturalidade e desenvoltura nesse livro. Não me parece escrito, os personagens falam apenas. Se estou certo, me diz: você lutou por isso?
SF: Mais uma vez, culpa do editor a existência desse livro naquele momento: eu vinha escrevendo no meu ritmo baiano de sempre, sem pensar em publicar nada, quando em setembro de 2012 ele me intimou a preparar um livro para lançar no início do ano seguinte. Foi bom, porque me obrigou a trabalhar. Revi o que estava em andamento e, melhor, limpei a gaveta das velharias: trechos de contos, de poemas, anotações; datilografados, manuscritos, impressos… Chequei tudo e acabei aproveitando aqui um verso, ali um parágrafo, acolá uma ideia… Então se você, com teus olhos de rapina, vê ali naturalidade, é porque eu consegui uma bela de uma proeza.
CP: Em Materiaes, editora Dubolso, 2000, há um conto longo ou novelinha curta chamado “Rugas” onde se acumulam versões de uma mesma situação, o encontro de um homem e uma mulher. Fiquei com uma sensação de estranhamento e ao mesmo tempo de medo, porque as versões parecem revelar uma rotina feroz, absolutamente besta, como uma espécie de engrenagem sob as emoções dos personagens. Em Novella, você usa a mesma estrutura em “Muito silêncio (por nada)” e novamente é o encontro de um homem e uma mulher. Pode falar alguma coisa, sem entregar o jogo?
SF: Claro. “Rugas” é isso que você falou: uma repetição da rotina de um casal enquanto ele volta pra casa após um dia de trabalho e é recebido por ela. A ideia da forma é reforçar mesmo as neuroses do cotidiano infeliz, as fantasias eróticas de adultério, a possibilidade de uma revolta a qualquer momento. Já o “Muito silêncio” é a biografia de um cara contada através de alguns de seus relacionamentos eróticos, desde o primeiro beijo inocente à traição conjugal, passando pela perda da virgindade e pelo sexo aleatório. Nos dois usei formas que se repetem para dar a visão do autor sobre os temas sem interferir no texto.
CP: Ao ler “Muito silêncio”, preferi imaginar que o personagem falava apenas pra uma mulher, sem saber a que mulher falava ou, mais provável, misturando todas as mulheres, inclusive as inventadas, numa só que é uma espécie de sombra em alguma madrugada insone, ou no meio de um porre. Como você deixa espaço pro leitor e sou do tipo que se esbalda…
SF: Há essa possibilidade, claro, e outras, espero. Isso é bom. Este “mesma mulher” faz parte das questões do autor: não seriam todas elas a mesma? Não seriam todas a tentativa de resolver as questões deixadas pela primeira? A pureza inicial não é a mesma sempre, apesar de tantas vezes entrarmos em situações “impuras” de que nos arrependemos depois? De alguma forma não estamos sempre falando de nós mesmos para a mesma mulher, a que pretendemos ideal?
CP: Terceiro, Lambe-lambe. Você diz que o livro surgiu como uma pergunta: quem é essa gente dos protestos de 2013? Vamos aos detalhes.
SF: Eu sempre olhei a vida por um viés político, sempre. O sonho de qualquer um da esquerda é ver “o povo na rua”. E naquele junho nós vimos, mas… querendo o quê? Qual povo? Os desdobramentos daquelas manifestações me angustiaram. Já era possível ouvir as primeiras trincas na casca do ovo da serpente do fascismo. O resultado estamos vendo agora, com um golpe se consolidando na frágil democracia brasileira. Responder a essa pergunta então foi ficando mais necessário: quem éramos nós nas ruas?
Claro que minha resposta só seria encontrada através da literatura e consequentemente criando um artefato literário. Depois de alguns meses buscando formas, encontrei essa que deu no Lambe-lambe: um fotógrafo de rua que vai registrando as pessoas que vê. Para que o livro e todo o conceito que levou a ele tivesse movimento, deixei que o fotógrafo usasse várias lentes, filtros, editores de imagens, câmeras digitais e analógicas e também circulasse pela cidade…
CP: Se me perguntam que diabos é esse livro, de contos ou crônicas, se de humor ou poesia, eu respondo que é de tudo um pouco e muito mais. Na verdade, pra mim o gênero dele se chama Sérgio Fantini, já que você joga em várias posições, às vezes ao mesmo tempo. Você concorda com isso? Tem ideia do que é isso?
SF: O gênero poderia ser o lambe-lambada (risos e grasnados). Mas, sim, antes de começar sabia que precisaria transitar por mais de um gênero: a crônica, mais próxima do retrato; o conto, celebrando a ficcionalização da realidade imediata; a poesia, que nunca abandonei; o ensaio, pra dar conta de algumas conexões entre os três anteriores… O humor, a ironia e até o sarcasmo tinham que temperar tudo isso, esta realidade tão dura e cruel.
A editora, por conveniência, chama de contos, mas Luiz Ruffato, que fez o posfácio, sacou logo que não são contos, a rigor, mas, como você, corvo atento que é, apontou, um mix de vários gêneros.
CP: Deixe eu citar o Borges: “George Moore dizia que um amigo tinha contado para ele um argumento, o argumento não sei se de um conto ou de um poema que ia escrever. Então, George Moore sugeriu uma correção que podia favorecer o trabalho e o outro lhe disse que não, que não podia aceitar isso porque a ideia era de Moore e não dele; que não ia aceitar uma ideia alheia. E Moore disse: compreendi que não era um artista, porque a um artista o que importa é a perfeição de sua obra, não o fato de que essa obra proceda dele ou de outros”.
Sei que você, ao contrário do amigo do Moore, passa teus textos pra muitos amigos antes de publicar. Conte um pouco do processo.
SF: Os primeiros textos que publiquei, poemas, 1976 a 79, não tiveram avaliação de ninguém. Os amigos gostavam e tava tudo certo. Só depois de lançar o primeiro livrinho é que comecei a receber orientações de leituras e dicas de revisão. Sempre achei isso muito bom, pelo lado prático da coisa, sem filosofia. Quando completei a primeira série de contos e estava a ponto de fazer a última datilografia, limpa, para mostrar a amigos, perdi todos eles num assalto. Em vez de reescrevê-los, optei por fazer uma novela com a memória que tinha deles, que deu em Diz xis. Foi o escritor Francisco de Morais Mendes quem teve a infinita paciência de ler o original de folhas pautadas manuscritas, datilografadas em uns três tipos de máquinas, tudo rabiscado e mal ajambrado numa pasta. Leu e repassou comigo linha a linha. Esse gesto me marcou pra sempre. Tirei um capítulo inteiro, por exemplo, porque ele me provou que não tinha nada a ver com o resto. (E eu gostava do danado, era um fantasma comentando a história.) Outros amigos, como Marçal Aquino, Hugo Almeida, Jeter Neves, Marcelo Carneiro da Cunha, Caio Junqueira Maciel e Ricardo Aleixo também leram aquele original e deram sua contribuição. E a novela teve uma ótima recepção. Tudo isso me provou que a leitura crítica é fundamental. Também fazendo revisão de originais e dando oficinas, profissionalmente, há tantos anos, vejo o quanto o autor deixa escapar, escrevendo a mais ou a menos. E como também não sou perfeito, sei que sempre haverá algo a ser corrigido em meus originais. Nunca publiquei nada que não tivesse recebido ao menos uma leitura crítica. A obra de arte, com aspas, é um produto. Sim, tem autoria, algo também questionável, mas é um produto cultural e pode e deve receber contribuições críticas ao menos do círculo de confiança do autor.
No início desta conversa, seu Corvo, você mencionou o Ernani Ssó. Eu encerro então te dizendo que ele tem sido inestimável nessas situações. Aliás, se o bar já não estivesse fechando, poderíamos emendar com muitos casos sobre esse assunto.
Para conhecer a obra e a trajetória de Sérgio Fantini, acesse seu blog.