3º NEURÔNIO

EUA: a vitória de uma greve histórica na GM e montadoras

Após semanas em luta, metalúrgicos venceram corporações do automóvel. O que o movimento conquistou? Como apostou em táticas inovadoras, apoio da opinião pública e solidariedade da classe? O que diz sobre a reinvenção dos sindicatos? Recomendamos o artigo de Mário R., publicado no El Salto, com tradução de Rôney Rodrigues para o Outras Palavras


Uma greve histórica acaba de ser vencida no setor automotivo dos Estados Unidos. Esta manchete, que pudemos ler em vários meios de comunicação nos últimos dias, combina elementos aparentemente contraditórios. É uma conquista sindical histórica que ocorre num lugar, os Estados Unidos, onde nas últimas décadas foram feitos grandes esforços para dissolver a solidariedade de classe e desmantelar a organização e a força sindical. Ocorre também num setor, o automobilístico, que tradicionalmente tem atuado na vanguarda na criação de modelos de organização produtiva que buscam justamente subordinar a força de trabalho.

Se as conquistas alcançadas são históricas, é aconselhável analisar por que o são e esclarecer como foram alcançadas. Nas linhas seguintes, são esboçadas uma série de considerações a esse respeito, tentando fornecer elementos que contribuam para dinamizar um debate na esfera sindical que tem sido revitalizado nos últimos tempos.

O futuro do setor automobilístico nos Estados Unidos representou, talvez, o declínio da sua supremacia industrial como nenhum outro. A decadência de uma cidade como Detroit, berço da indústria automobilística, é sintomático do ocaso daqueles bons e velhos tempos do setor nos Estados Unidos. O centro de gravidade da produção industrial de automóveis está hoje em outras regiões – na Ásia e, especialmente, na China – face à estagnação de um setor nos Estados Unidos orbitado por um fluxo contínuo de fechamentos de fábricas e deslocalizações, desemprego crescente, processos de reajuste salarial e deterioração gradual das condições de trabalho.

O sindicato United Auto Workers (UAW) tentou enfrentar esta tendência, organizando uma greve que começou em 15 de setembro, com a paralisação da atividade de três fabricantes: a fábrica da Ford em Wayne (Michigan), a fábrica de montagem da General Motors em Wentzville (Missouri) e a fábrica do grupo Stellantis em Toledo (Ohio). Um total de 14 mil pessoas estiveram em greve, que mais tarde se espalharia para outros centros produtivos do país. Estas três gigantes do setor aglutina cerca de 40% da cota de mercado dos EUA na venda de veículos novos; por isso, o impacto setorial da greve é de fato considerável.

Apenas algumas semanas depois, os trabalhadores chegaram a um acordo com os três fabricantes que inclui melhorias substanciais em múltiplas áreas. Foi acordado um aumento progressivo dos salários até atingir pelo menos um aumento de 25%, especialmente para as pessoas mais precarizadas, como funcionários temporários e recém-contratados. Foi reduzida – e, em alguns casos, eliminada – a dupla escala salarial, que ajustava para baixo o salário dos novos trabalhadores em relação aos já contratados, ainda que realizassem o mesmo trabalho.

Conseguiu-se também uma redução nas contratações temporárias, conferindo a este pessoal o status permanente num curto espaço de tempo. Foram introduzidas melhorias em algumas licenças, nos planos de aposentadoria, foi admitido o direito à greve em caso de fechamento de fábricas ou para impugnar decisões de investimento que contrariem os interesses dos trabalhadores, e foi aberto um quadro para negociar uma redução da jornada de trabalho semanal para 32 horas, entre outras medidas.

A força e o sucesso desta mobilização sindical surpreendem em um setor que, como acima referido, tem dedicado grandes esforços à erosão do poder sindical. Isso foi feito com estratégias corporativas canalizadas através de múltiplos canais, mas assentadas numa série de princípios gerais: fragmentar e controlar o trabalho e, portanto, a força de trabalho. É aconselhável deter-nos um pouco sobre isto, porque a estratégia sindical implementada traz lições sobre como combatê-la.

A atividade do setor automobilístico está organizada em cadeias produtivas globais, cujas pontas de lança são as fábricas onde são montados os veículos (aqueles centros onde têm sido impulsionadas as greves). Uma infinidade de componentes e módulos de veículos chegam a essas fábricas provenientes de uma grande rede de fornecedores geograficamente dispersos, alguns deles localizados muito longe dessas fábricas finais. Trata-se, portanto, de um processo produtivo altamente fragmentado, cuja produção ocorre em múltiplas empresas e, portanto, onde o trabalho é realizado por inúmeros grupos de trabalhadores também segmentados.

Estas montadoras, pertencentes aos grandes fabricantes de automóveis, são o nó central a partir do qual se articula toda a produção do setor. Os próprios fabricantes, através do controle que têm sobre a concepção do veículo e do seu processo de fabricação, têm a capacidade de condicionar fortemente a organização do trabalho ao longo de toda a cadeia. Ao longo das últimas décadas, os grandes fabricantes de automóveis desenvolveram, em geral, uma política de produtos que visa homogeneizar a gama de modelos que lançam no mercado.

Diferentes na sua aparência externa, os diferentes modelos partilham uma percentagem crescente de componentes internos comuns, o que permite desenvolver economias de escala na produção e poupar custos de fabricação. Esta crescente semelhança entre modelos tem também impulsionado uma simplificação e padronização dos processos de trabalho nestas montadoras, o que desencadeia a redução das diferenças de especialização produtiva entre fábricas finais.

Qual é o outro lado desta estratégia? Homogeneidade e competição são duas faces da mesma moeda. A crescente semelhança entre montadoras tem como contrapartida uma intensificação da concorrência entre elas. A concorrência não se desenvolve apenas entre diferentes grupos automobilísticos, mas também entre trabalhadores de diferentes fábricas finais do mesmo grupo, ou seja, entre o pessoal da mesma empresa. Uma competição permanente entre um número crescente de montadoras para oferecer as melhores condições de rentabilidade e, assim, melhorar o seu posicionamento na hora de optar pela adjudicação de novos modelos pela matriz do grupo empresarial.

Esta intensificação da concorrência traduz-se num ajuste, também permanente, das condições de trabalho nas referidas centrais de produção final; um ajuste que se espalha pela estrutura de custos de toda a cadeia de abastecimento. A lógica do processo é clara: extrair a máxima rentabilidade possível dos processos de trabalho e desmantelar as condições sob as quais o contrapoder sindical pode surgir. Em suma, o que esta estratégia gera são trabalhadores cada vez mais fragmentados, mais facilmente substituíveis e com incentivos para não cooperarem.

A estratégia implementada pelo UAW tenta enfrentar esta dinâmica de competição impulsionada pelo capital que centrifuga as relações de cooperação e solidariedade trabalhista. A partir deste cenário, a capacidade de organizar e mobilizar um volume significativo da força de trabalho – foi alcançado um total de 46 mil trabalhadores em greve – já é uma primeira conquista notável. O fato de o fazer em diferentes montadoras representa simultaneamente um salto qualitativo, pois provoca um curto-circuito nesta dinâmica de divisão e colisão de interesses entre trabalhadores e trabalhadoras.

Outro elemento estratégico diferencial encontra-se na organização do conflito para mudar o rumo da negociação, tomando a iniciativa, propondo um quadro ofensivo e reequilibrando um a correlação de forças inicial, muito desnivelada. A greve, de fato, foi deflagrada depois de esgotado um primeiro período de negociações em que os grandes fabricantes não cederam, e depois de uma consulta aos sindicalizados que alcançou o apoio unânime para sustentar esta nova fase baseada num recrudescimento do conflito.

Em suma, a negociação entre partes com interesses opostos, num quadro de relações de poder desequilibradas, só pode levar a um resultado lógico: a parte com maior poder de negociação impõe a sua agenda. Em outras palavras, não há negociação satisfatória para o grupo de trabalhadores se estes não disporem de recursos para fazer valer o seu poder, e esse poder de negociação reside, em última análise, na capacidade efetiva de interromper o processo econômico. O instrumento da greve demonstrou-se, mais uma vez, como uma ferramenta eficaz para estabelecer um quadro de negociação de forma ofensiva na conquista das reivindicações sindicais.

As greves, de fato, começaram em algumas das fábricas mais lucrativas para o empresariado, e estima-se que tenham gerado um saldo total de perdas de cerca de um bilhão de dólares para cada um dos três fabricantes. Além disso, longe de iniciar a negociação com todas as cartas na mesa, o roteiro era aumentar progressivamente a escala do conflito, estendendo seletivamente a greve a outras montadoras dependendo do curso das negociações, aumentando gradualmente a pressão. Não apenas a outras montadoras, mas também a outras fábricas fornecedoras destes grandes grupos, outros os elos estratégicos da cadeia em que a deterioração das condições de trabalho tem sido significativa.

Tudo isso não foi possível apenas pelo perfil combativo que a estratégia sindical do UAW adotou, mas também porque ele contar com um volume relevante de filiados, desenvolver um trabalho sindical paciente e consciente, estabelecer e comunicar objetivos claros e tecer a solidariedade de classe. Sem esta combinação de ingredientes a greve não teria prosperado. Mas podem ser identificados outros elementos que também contribuíram para o seu sucesso.

O fundo de resistência é, sem dúvida, um apoio fundamental para deflagrar com êxito a greve, mas sobretudo para sustentá-la ao longo do tempo e, com ela, impulsionar as negociações. O fundo de greve que o UAW tinha foi estimado em cerca de 825 milhões de dólares, o que teria permitido que a greve se prolongasse por muitas semanas. Outro acerto estratégico foi o momento em que esta grande greve foi lançada e a história que foi articulada para estimular o conflito. Depois de mais de uma década de forte ajuste salarial e deterioração das condições de trabalho no setor, nos últimos anos os lucros destes grandes grupos dispararam.

Concretamente, os lucros brutos da atividade normal destas grandes empresas aumentaram substancialmente entre 2019 (último ano em que a atividade se desenvolveu normalmente antes do início da pandemia) e 2022. Foi uma aumento de 27% na Ford, 13% na General Motors e nada menos que 109% no grupo Stellantis. No entanto, a retórica sobre ajustes no emprego e nas condições de trabalho continuou, agora com mais virulência, com o álibi da transição para veículos elétricos e o agravamento da concorrência contra os fabricantes asiáticos.

Esta situação, portanto, tem sido aproveitada para partir para a ofensiva e gerar uma narrativa que demarca um claro antagonismo entre o lado empresarial e o grupo de trabalhadores, para esclarecer interesses e objetivos conflitantes e para dar legitimidade às reivindicações, tentando assim ampliar uma certo apoio na opinião pública, algo especialmente relevante em conflitos desta magnitude. O fato do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, ter aparecido no Michigan com um megafone na mão encorajando a continuação da greve não é casual e responde à forma como o sindicato conseguiu reverter os debates públicos a seu favor.

No dia 25 de outubro, o UAW chegou a um acordo com a Ford, no dia 29 com a Stellantis, e no dia 31 foi alcançado um acordo provisório com a General Motors, concluindo com sucesso esta greve. O sindicato parece querer aproveitar a corrente a seu favor e já está de olho em fábricas de outros grupos como Toyota e Tesla, até agora não sindicalizadas. A greve foi vencida e as lições que podem ser tiradas são muito úteis para pensar sobre como reorientar a estratégia sindical na Europa [e na América Latina]. Embora as condições em que se desenvolve a atividade sindical sejam muito diferentes nos dois lados do Atlântico, o trabalho não deve deixar de se concentrar na tentativa de unir as forças e os interesses do trabalho que o capital é responsável por fragmentar.

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