Do acesso de entrada até o valão que assombra a hoje quase fantasma vila de nome Maria, um incômodo mau cheiro percorre junto os cerca de quinhentos metros de mato fechado, montanhas de lixo, carcaças de automóveis e casebres abandonados, queimados ou derrubados pela água. Enquanto adolescentes, adultos e idosos puxam carrinhos, reviram e reciclam de tudo que você possa imaginar, brincam crianças, calçadas ou descalças, que oferecem largos sorrisos de boas vindas a quem se perde por ali, naquelas margens da Freeway, divisa de Gravataí com Cachoeirinha.
No contraste com esse mundo exterior degradado e aparentemente abandonado, tanto pelo poder público quanto pelos próprios moradores, Marilei da Silva Nunes, 47, aparece à porta desatando um conjunto branco de avental e touca, limpíssimos. Com um pano, cobre os doces e salgados recém preparados e que lhe renderão parte dos menos de mil reais com que sustentará a família no mês. Ela desce as escadas marcadas pela rotina furiosa da água que sobe a cada chuva e abre o portão para servir a reportagem do Seguinte: um café com realidade.
– E aí, quando vamos para a casa nova?
Com um brilho de felicidade no olhar, é a primeira pergunta feita por ela para Luciane Ferreira e Natália Luhl. Uma coordenadora de Habitação, outra apoiadora social da Prefeitura. Ambas, três anos de convivência depois, já acolhidas como parte da comunidade esquecida há quase duas décadas naquele cantinho de mundo.
E era sobre um tal Novo Mundo, não longe dali, e com suas casas coloridas, que Marilei queria saber. A dela, vermelha, escolhida pelo neto Guilherme, 4, que timidamente recebe um afago no cabelo enquanto, ainda de bico na boca, ao lado do cãozinho Bebê, da cadelinha Pipoca e do gato Baleia, espia sentado na soleira da porta onde a cada inverno a enchente faz ‘ondinha’.
– Em agosto, no mais tardar setembro tem mudança, Preta! – calcula Luciane, já abraçada à nova amiga, de quem revela o apelido e descreve como um símbolo da luta e esperança das quase 200 pessoas que restaram ali, com pés sobre o barro e abaixo de um céu cortado por ameaçadores fios das redes de alta tensão, e que serão reassentados no Residencial Novo Mundo, que fica a pouco mais de dois quilômetros da Vila Maria, praticamente no mesmo bairro.
Assista aqui ao vídeo que produzimos da Vila Maria ao Novo Mundo
As vilamarianas
Preta, viúva, além de ser chefe da casa, como a maioria das vizinhas que comandam as 99 famílias da ocupação, compartilha de uma história comum a outras vilamarianas.
Há 11 anos, logo após perder tragicamente o marido Giovani, vítima de um choque elétrico quando fazia consertos na casa de um vizinho, ela ficou desempregada com o fechamento da padaria onde trabalhava e precisou fugir do aluguel, da água e da luz que pagava na Vila Navegantes, também uma região pobre de Cachoeirinha.
Por R$ 4 mil comprou a casinha hoje roxa, de número 42, na beira do canal, onde foi morar com os filhos Paulo, 18, Priscila, 13, Marco, 10, Giovana, 5 e Jean, 2. Na barriga, carregava a Paula, que nasceu lá, mesma terra de escuridão e silêncio onde correu o sangue dos dois filhos mais velhos, assassinados por forasteiros.
Porque quem vive ali se dá bem, dizem.
Ao se tornar uma vilamariana, Preta sentiu-se acolhida pelo calor daquelas relações tipicamente interioranas, que os que conhecem vila sabem como é. O frio na barriga só sentiu meses depois da mudança, quando a primeira tempestade fez subir vertiginosamente as águas caudalosas e cinzentas do Barnabé. Ali, entendeu que teria que conviver com o risco do arroio transbordar.
Horror que demorou cinco anos, mas literalmente arrombou sua porta.
A vila ficou submersa por duas semanas e ela e a família precisaram ser resgatadas pelo Corpo de Bombeiros, junto a outros flagelados, depois abrigados na escola Olenca Valente e na igreja Nossa Senhora Aparecida.
– É que a gente vive em Veneza – diz, com um inteligente e irônico sorriso, brincando com a própria desgraça e reduzindo a nada as mazelas de quem a ouve.
: Preta, a filha Paula e o neto Guilherme, na casinha bem cuidada onde moram na área de risco da Vila Maria
Cobras, lagartos e jacarés
A mesma resiliência estampa a cara, tão feliz quanto, de Carmen Flores de Abreu, 60. O marido foi um dos pioneiros da Vila Maria, 18 anos atrás. Já ela demorou outros dez para se render. Foi só quando largou o emprego de doméstica em Ipanema, na zona sul de Porto Alegre, que a hoje recicladora admitiu-se, muito mais por necessidade do que por outra coisa, uma vilamariana.
– Era um Deus me livre morar aqui! Quando o Maurício veio para cá tinha cobras, lagartos e até jacarés. Eu dizia: eu não vou! – diverte-se, só fechando a expressão como tempo de chuva ao recordar o dia em que quase foi dragada pelas águas junto a um bombeiro que lhe resgatava.
– Não se via onde começava ou terminava o valão. Era tudo água. E o motor do barco parou…
Mas a esperança já ilumina novamente o rosto de Carmen ao contar que quase diariamente, na cata de materiais para reciclagem, vai dar uma espiadinha no Residencial Novo Mundo.
– Às vezes sonho que estou na casa nova. Aí acordo, e estou aqui. Ai, ai! – suspira, confidenciando que o marido, após anos e anos, tapinhas no ombro de eleição em eleição, governos e governos, enchentes e enchentes, “só acredita quando pegar a chave na mão”.
: Carmen se diverte ao contar que enrolou o marido por dez anos antes de aceitar morar na Vila Maria
Vale a pena ser prefeito
As 99 casas já estão prontas, pintadas e com o inconfundível sistema de aquecimento de água ornando o telhado. Porém, acabamentos ainda são feitos na estrutura de calçadas e na iluminação do pequeno condomínio que terá entradas pelas ruas da Nutrella e Vital Brasil.
– Não tem comparação com nada a situação que essas famílias vivem hoje por lá. Olha que ajeitadinhas essas casas que serão o novo lar delas! E o melhor é que, nesse caso, conseguimos manter todos em uma comunidade próxima, não tem nem a ruptura que acontece quando se mudam para muito longe – avaliou o prefeito, quando acompanhou o Seguinte: em uma vistoria às obras em junho.
– Aquela comunidade viveu anos atravessando por dentro do canal ou por um pontilhão improvisado. Agora vai morar com dignidade. E aquela área, que é de proteção ambiental, será toda arborizada – emocionou-se Marco Alba, dizendo que momentos como aquele faziam valer ser prefeito.
: Prefeito Marco Alba sorri, durante vistoria de junho às obras do Residencial Novo Mundo
Vida em condomínio
No Residencial Novo Mundo, cada casa tem dois quartos, um banheiro e uma cozinha conjugada com a sala. Nos fundos, um pequeno pátio que serve também como área de serviço. Ao todo, 48m² – todas elas com o sistema que utiliza o calor do sol para aquecer a água. Na frente, uma ampla janela, para garantir iluminação natural.
Além disso, o condomínio conta com um centro comunitário, uma praça, portaria e cancha de esportes. Um chimarródromo, pedido feito pelos futuros moradores, também foi incluído no projeto.
O investimento total foi de R$ 6,5 milhões. Cada imóvel, financiado pela Caixa Econômica Federal, é avaliado em R$ 64 mil. As famílias, todas com rendimento abaixo de R$ 1,5 mil, pagarão parcelas entre R$ 80 e R$ 270 mensais, conforme as condições de cada um.
– Temos feito reuniões com eles, conversado sobre a vida em condomínio. E além da inclusão em programas sociais da Prefeitura, também ofereceremos oficinas para capacitação e integraremos os recicladores a cooperativas. O local de trabalho deles não será mais na frente da própria casa. Não será só uma mudança de endereço, mas uma mudança de vida – empolga-se a coordenadora de Habitação Luciane Ferreira.
– Esses anos convivendo com essas famílias nos mostram o quanto eles batalham e merecem uma vida melhor – emociona-se a apoiadora social Natália Lhul, que na formação do novo governo chegou a pedir que, caso não fosse aproveitada, pudesse continuar a trabalhar voluntariamente com aquela comunidade.
: Carmen, Luciane Ferreira, Preta e Natália Lhul no 'café com realidade' da manhã da última quarta
A festa da Patrícia
Se a data da mudança se aproxima, uma festa já está marcada para o Novo Mundo. A Preta, que não pode celebrar os 15 anos da filha hoje com 24, quer fazer no centro comunitário do residencial a formatura como técnica em enfermagem da funcionária da Nutrella e orgulho da família, Priscila.
– É mundo novo e vida nova! – comemora a mãe coruja, mostrando o quadro com a foto da jovem, que é a sua cara.
Para essa gente até hoje esquecida, um Novo Mundo, em breve, será possível.
Não viu lá em cima? Assista aqui ao vídeo da Vila Maria ao Novo Mundo