Hoje, no banho, você vai se tocar. Existe um câncer perigosíssimo rondando esse planeta, desde que mundo é mundo e, infelizmente, ele ataca muitas mulheres. Hoje, de forma rápida e precisa, de preferência nua e embaixo da água quente, você pode detectar esse mal e salvar a sua vida. Descobrir no começo é sempre mais fácil.
O teste é muito simples. Enquanto você esfrega a sua cabeça, responda: é um pouco irritante quando a conta chega e ele aceita de bom grado o seu cartão de crédito? Ao descer pro pescoço, seja sincera consigo mesma: é um tanto perturbador quando elenão sabe o que fazer da vida e chora? Uma vez nos seios, não hesite em descobrir a verdade: ele não querer transar porque está angustiado lhe dá vontade de rir? O assunto é machismo. Sim, precisamos combatê-lo. Mas preste atenção nas coisas que você fala, pensa e sente. Será que essa doença tão ancestral quanto destruidora não mora também dentro de você?
Você não está louca “porque é mulher”. Você está louca porque nasceu e essa é a única honestidade possível frente a existência. Estamos todos ensandecidos! Dá só uma olhadinha no seu colega, esse mesmo que anda pelos corredores se fazendo de inabalável e professor supremo do equilíbrio espiritual. Chega mais pertinho dele e faz alguma pergunta que não esteja no roteiro ensaiado de macho alfa pronto pra vida. Você vai ficar chocadíssima com o show de esquizofrenia. Então, por favor, se tire desse lugar em que todo machinho adora te colocar. Não a cozinha, o corredor da psiquiatria.
Ensaboe com vontade a barriga e repita comigo: você pode ter um dragão fumando crack tatuado na virilha, você pode ter aberto espacate usando saia plissada PP no Natal da firma, você pode chegar em uma festa e não conseguir mais contar nos dedos das mãos e dos pés a quantidade de caras com quem já transou (só esse ano). Isso não significa que você é uma puta. Aliás, não tem problema nenhum ser puta. Existe uma diferença entre ser puta e ser “uma puta”, como os caras gostam de falar.
Uma vez eu disse NÃO para um rapaz que me forçava a tirar a roupa e ele segurou meu braço, machucando: “Cê veio até aqui pra que, porra?”. Entrei chorando e tremendo no meu carro, elaborando uma lista de mil defeitos para mim. Gostaria de poder voltar no tempo e responder: eu vim pra socar a sua cara, eu vim pra dar um peteleco na cabeça xucra do seu pequeno pênis. Agora lave com cuidado suas coxas e entenda uma coisa: você não é obrigada a querer nada. Você não é obrigada a fazer nada. E se você estiver nua e cravejada em lantejoulas vermelhas, de quatro, em um chão cheio de gel, e disser NÃO, porque NÃO for o que te apetecer dizer, o moço, iludido e entumecido, que aceite a dura realidade sem fazer uso de nenhuma força.
Muitas mulheres nas redes sociais, nas reuniões, nos almoços em família, estão dizendo que “essa menina estuprada não era nenhuma santa”. E onde encontramos santas, a não ser em imagens de gesso ou fantasias ignorantes de “moça pra casar”? Hoje no banho, enquanto você lavar a sua bunda, eis uma boa hora para lembrar que, uma vez que movidos a impulsos humanos, somos todos imundos de desejos e dejetos. Não existem santas, mas existem, triste realidade, demônios. Trinta de uma única vez. Lutemos contra eles, mas também contra o ressoar dessas vozes machistas enjauladas em nossas dobras, poluindo nossas crenças. Olha lá aquele monte de culpa indo pelo ralo.
Tati Bernardes é colunista do jornal Folha de São Paulo. Para ler outras crônicas da escritora, acesse o site da Folha SP ou acompanhe o seu Facebook.