“Especialista em segurança pública examina atuação policial em chacinas e o impacto das câmeras corporais”. Recomendamos a reportagem de Andrea DiP, Clarissa Levy e Ricardo Terto, com a colaboração de Ana Alice de Lima, publicada pela Agência Pública
No dia 27 de julho, um policial da ROTA — batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo — foi morto no Guarujá. A morte desencadeou a Operação Escudo, uma das mais letais da história, com 600 agentes mobilizados e 16 mortos confirmados. Contrapondo a versão oficial de que as mortes teriam ocorrido após confrontos, moradores têm relatado casos de execuções e tortura.
Além da operação na Baixada Santista, outras ações policiais na Bahia e no Rio de Janeiro, no início de agosto, resultaram em 45 mortes. Somente em 2023, segundo dados do Fogo Cruzado, 148 pessoas já foram mortas em operações desse tipo, em um combate autodeclarado contra o crime. De acordo com a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, essa abordagem faz parte de uma política de segurança pautada no confronto.
No episódio 84 do podcast Pauta Pública, lançado nesta sexta-feira (11), Bueno foca em um cenário alarmante, destacando a recente morte do adolescente Thiago Menezes Flausino, 13 anos, na Cidade de Deus, no último domingo (6). Enquanto a família afirma que o jovem foi assassinado e a cena do crime manipulada, a PM alega que Thiago disparou contra os oficiais.
Além de analisar a atual política de segurança pública, a socióloga também fala do impacto das câmeras corporais na redução da letalidade policial.
Leia os principais pontos da entrevista e escute o podcast na íntegra abaixo.
[Andrea DiP] Nas últimas semanas, policiais militares mataram ao menos 45 pessoas, somando chacinas ocorridas na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Só neste ano, foram registradas 18 chacinas na Grande Salvador e 20 na Grande Rio. Segundo o levantamento do Fogo Cruzado, ao menos 148 pessoas foram mortas pela polícia nessas operações. Na Bahia, o governador responsável pela polícia é do PT; em São Paulo, o estado está sob Tarcísio de Freitas (Republicanos) e, no Rio de Janeiro, sob Cláudio Castro (PL), vice de Witzel, que exaltava as mortes cometidas por policiais. O que faz com que os mecanismos de controle e fiscalização da força policial não funcionem? Quais fatores você considera influentes para que, neste momento, a política pareça desconsiderar operações que acumulam execuções e assassinatos cometidos pelo Estado?
Quando falamos, por exemplo, da Bahia governada pelo PT – hoje a gente tem o Jerônimo Rodrigues, mas até o ano passado era o Rui Costa e a letalidade da polícia explodiu durante seu governo. Ele, inclusive, já afirmou que um policial na frente de um suposto criminoso é igual a um artilheiro na frente do gol. Mencionamos Tarcísio e Cláudio Castro de partidos que, supostamente, são oposição ao governo federal. Isso revela o quanto a decisão é política e que o campo da segurança pública não distingue entre direita e esquerda no resultado das políticas de segurança.
Esquerda e direita têm implementado políticas de segurança baseadas em uma suposta lógica de confronto, acreditando que uma polícia violenta é o que a população quer. Isso, infelizmente, pode gerar votos, mas, sobretudo, acredita-se genuinamente na ideia de que matar bandido é a missão das forças policiais. É importante a gente destacar que os mecanismos de controle só funcionam a partir de uma decisão política.
Em São Paulo, apesar de termos observado um crescimento da letalidade policial em 2023, até o ano anterior, houve uma redução expressiva da letalidade. Isso porque, politicamente, Dória defendeu essa posição, sobretudo após o caso em Paraisópolis. Ele percebeu que havia perdido totalmente o controle da polícia e que isso o prejudicaria. Ele resolveu se diferenciar e não só bancou o projeto das câmaras corporais dentro da Polícia Militar — em uma decisão política, é importante destacar — ele bancou que essas câmaras tenham gravação ininterrupta. Porque se dependesse do policial fazer o acionamento da câmera quando ele vai cometer um ilícito, um desvio, ele não vai gerar provas contra si mesmo.
Foi justamente essa decisão de fazer a gravação ininterrupta que foi capaz de reduzir a letalidade em São Paulo. Os batalhões que incorporaram as câmaras tiveram uma redução [de letalidade] de mais de 70%, é algo muito expressivo. Mas foi a mesma decisão política que encerrou o programa, optando por enviar policiais para a baixada sem usar câmeras corporais ou com câmeras sem bateria, e com mínima transparência nas operações.
Infelizmente, a conclusão é que a virada democrática dos anos 1980 não representou uma mudança de padrão do uso da força para as polícias, mas mais do que isso, não representou não só porque as polícias não querem, mas porque os políticos nunca quiseram.
Talvez nenhum governador seja capaz de controlar completamente suas polícias. Isso é um risco enorme, não apenas para a população preta e periférica, que é frequentemente alvo dessas operações, mas também para a democracia.
[Andrea DiP] São Paulo apresentava uma tendência de redução da letalidade policial desde 2020. Como mencionado, alguns especialistas atribuem essa queda às câmeras nos uniformes dos policiais. No entanto, as mortes resultantes de intervenção policial no Estado de São Paulo aumentaram 26% no primeiro semestre do governo Tarcísio de Freitas. Como você interpreta esse aumento e a gestão policial sob o governo Tarcísio?
A eliminação do programa das câmeras corporais foi uma promessa de campanha de Tarcísio. Ele recuou, como tem feito em vários outros temas, após alguma pressão. Mas, a julgar pelos resultados iniciais, parece que está desmantelando o programa sem remover a câmera dos uniformes dos policiais. Ele está encontrando mecanismos para fragilizar a política, pois ele entende que é legítimo que a polícia cause muitas mortes e que essa é uma forma legítima de fazer política de segurança. Não tenho grandes esperanças de que veremos o programa Olho Vivo, que é o programa das câmeras corporais no fardamento, sendo priorizado pela atual gestão.
É importante lembrarmos que tecnologia não é uma panaceia para o controle do uso da força. Observando experiências internacionais, especialmente nos Estados Unidos, onde há uma década se utiliza essa tecnologia, não temos notícias de polícias que tiveram uma redução tão expressiva da letalidade, ou dos níveis de uso da força como a gente viu em São Paulo.
Estudos também indicam que, em média, os policiais ativam as câmeras em 35% das ocorrências. O fato de fragilizar esse mecanismo e, sobretudo, de transmitir à tropa a mensagem de que está tudo bem matar e usar força em seu trabalho, porque isso vai ser aceito pela política, pela Secretaria de Segurança, pelo comando da tropa, isso por si só já é a mensagem que o cão de caça na ponta precisa.
Não quero generalizar, estamos falando de mais de 80 mil policiais. Se todo mundo resolvesse apertar o gatilho, a coisa realmente ia ser grave. Mas basta que 1% tenha disposição para o confronto e para causar mortes para gerar resultados catastróficos. Para todo mundo, inclusive, porque uma outra coisa que a gente fala pouco é da vitimização policial.
Com a adoção das câmeras e outras medidas, alcançamos os menores números de policiais assassinados da história, em quase 30 anos de estatísticas. E foi com uma polícia mais violenta que iniciamos o ano, com mais mortes causadas pela polícia e, consequentemente, mais policiais sendo mortos. À medida que a polícia se torna mais violenta, os policiais também ficam mais expostos ao risco.