CLAITON MANFRO

Fernando Peixoto: um intelectual militante que fez do teatro uma trincheira

Fernando Peixoto (1937–2012) foi muito mais que um artista; foi um pensador, um provocador, um intérprete dos momentos mais difíceis em nosso país. Ator, diretor, dramaturgo, tradutor e crítico, sua trajetória nos convida a refletir sobre como o teatro pode ser uma ferramenta para transformar o mundo – e não apenas para entretê-lo. Como disse o crítico Bruno Zambelli: “É através de Fernando Peixoto que podemos compreender a importância de algo que o teatro tem perdido com o passar dos anos: a vontade de transformar seu próprio tempo.”

Nascido em Porto Alegre, Peixoto logo encontrou nos palcos o seu lugar. Mas ele sabia que o teatro não era apenas uma profissão: era uma trincheira. Nos anos 1960, em meio à ebulição cultural e política do Brasil, Fernando integrou o lendário Teatro Oficina, ao lado de José Celso Martinez Corrêa, onde o palco se tornava resistência e cada espetáculo, um ato político. Em tempos de ditadura militar, essa escolha não era simples. Fernando fez do teatro um espaço de contestação, um lugar onde o público não apenas assistia, mas pensava, refletia e, talvez, saía diferente.

Fernando era apaixonado pela obra de Bertolt Brecht e rapidamente se tornou um dos maiores intérpretes do dramaturgo alemão no Brasil. Mas, em vez de uma tradução literal, Peixoto reinventava Brecht para um Brasil tropical.Quando ele adaptava obras como A Mãe e Os Fuzis da Senhora Carrar, fazia isso de forma conceitual e profunda, para fazer ecoar as contradições de nossa sociedade. Ele acreditava que o teatro deveria ser, acima de tudo, um espaço de debate. Segundo o diretor Antunes Filho, “Fernando trouxe Brecht não como uma fórmula, mas como uma lente para enxergar o Brasil”. A montagem de A Mãe, por exemplo, misturava a estética épica com as dores de nossa desigualdade, transformando a obra num retrato do trabalhador brasileiro.

E não era só com Brecht que isso acontecia. Fernando também dialogava com outras referências, trazendo traduções de peças de autores como Jean-Paul Sartre e Heiner Müller. Sua inquietude intelectual ia além do palco, refletida nos seus livros, que desnudavam o teatro e o expunham como algo profundamente ligado à política e à ética. No livro, O Que É Teatro?, ele explora questões fundamentais para artistas e espectadores, e em Brecht no Brasil, discute a recepção e adaptação do dramaturgo em nosso país. Sobre este último, a pesquisadora Iná Camargo Costa afirmou: “Fernando não apenas traduziu Brecht; ele o recriou, o apropriou. Tornou-o parte do nosso tempo e da nossa luta.”

Fernando nunca separou arte de vida. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ele acreditava que a cultura deveria estar a serviço das transformações sociais. O jornalista Zuenir Venturadisse que “Peixoto era um militante que subia ao palco com a mesma intensidade que escrevia um manifesto”.

Enquanto outros recuavam diante da censura, Fernando avançava, acreditando na força da cultura como resistência. Suas montagens traziam questionamentos, e suas críticas desafiavam até mesmo os padrões estabelecidos no próprio meio artístico.

Apesar de sua profundidade, Fernando era leve. Ele sabia conversar, trocar, ouvir. Jovens artistas que cruzaram seu caminho frequentemente o descreviam como um ser generoso e inspirador. “Ele fazia com que você sentisse que o teatro era um ato de amor e coragem,” disse a atriz Denise Fraga. Sua abertura para o novo era quase um manifesto pessoal, e sua disposição em ensinar o tornava um eterno mestre, mesmo sem jamais se colocar acima de ninguém.

Fernando também era um profundo humanista. Enxergava o teatro não só como um reflexo das desigualdades, mas como um instrumento para transformá-las. Cada projeto seu parecia perguntar: “E se pudéssemos ser diferentes?” Essa visão, segundo o crítico Sábato Magaldi, foi essencial para o teatro brasileiro dos anos de chumbo. “Fernando nos deu coragem. Ele mostrava que a arte não precisava pedir desculpas; ela tinha um lugar, e esse lugar era no front.”

A carreira de Fernando Peixoto atravessou fronteiras. Como tradutor, ele trouxe para o português algumas das maiores obras da dramaturgia mundial, criando uma ponte entre o público brasileiro e histórias que ressoam universalmente. Para ele, o teatro era como uma árvore: com raízes fortes no local, mas galhos que se estendiam para abraçar o mundo.

Fernando nos deixou em 2012, mas seu legado permanece. Ele é lembrado não apenas como um artista completo, mas como alguém que acreditava profundamente no poder transformador da arte. Para ele, o teatro nunca foi um espaço neutro. Era uma arena, uma oficina, um sonho – tudo ao mesmo tempo. “Enquanto houver desigualdade, o teatro terá um papel essencial. E enquanto houver teatro, haverá esperança,” dizia.

Essa esperança ainda nos inspira. Fernando não era só ator ou diretor; ele era um verdadeiro construtor de conexões — entre o passado e o futuro, entre o palco e a vida, entre a arte e a luta. Como bem disse o dramaturgo Sérgio de Carvalho: “Fernando Peixoto foi uma escola. Não de teatro, mas de humanidade.”

O teatro brasileiro carrega em seu pulsar o eco do que Fernando Peixoto nos ensinou: ele nunca é só entretenimento. É resistência, provocação, sonho e, sobretudo, uma ferramenta para transformar o mundo.

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Zaffa não curte Anitta

Luiz Zaffalon (PSDB) não curte a cantora Anitta. Entre um post criticando gente que joga lixo na rua, onde cobra “civilidade”, e outro fazendo compras no supermercado, “domingo de manhã,

Leia mais »

Receba nossa News

Publicidade