3º NEURÔNIO

Freud explica: como psicanálise ajuda a entender reação de bolsonaristas

Foto Sérgio Lima | Divulgação

Estudo de Sigmund Freud organiza o conhecimento sobre as movimentações políticas e sociais e seus efeitos coletivos e subjetivos. Recomendamos o artigo da jornalista Amanda Serrano, publicado pelo EM


A obra “Psicologia das Massas”, do precursor da psicanálise Sigmund Freud, foi escrita em 1921. Nesse período, a Europa vivenciava a expansão do fascismo na Itália (1922) e do nazismo na Alemanha (1933). O livro é essencial para compreender a composição dos grupos e os modos como as pessoas se identificam com suas coletividades e reagem ao diferente.

A obra de Freud se configura como um estudo capaz de organizar o conhecimento sobre as movimentações políticas e sociais e seus efeitos coletivos e subjetivos. Portanto, ajuda a entender os acontecimentos recentes na eleição presidencial no Brasil entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

Nos últimos dias, após a vitória de Lula, manifestações tomaram conta das ruas em várias regiões do país. O motivo era um só: bolsonaristas não aceitaram o resultado das urnas. Os movimentos reuniram grande quantidade de pessoas, bloquearam rodovias e ruas, disseminaram fake news, pregaram a violência e pediram intervenção militar e a anulação do resultado.

A criação destes grupos manifestantes se baseia em identificações compartilhadas, aspirações e ideais que podem ser localizados em comum.

– Essa lógica é organizadora de nossos laços sociais, e explica como nos identificamos com o grupo, elegendo uma figura de liderança – explica Débora Ferreira Bossa, professora de Psicologia e doutoranda em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais.

De acordo com Débora, essa figura pode ser personificada – como é o caso de representantes políticos (a exemplo de Jair Bolsonaro) e religiosos – ou uma ideia compartilhada que estabelece a identificação do grupo em sua unicidade.

– Entretanto, essa mesma lógica pode influenciar atos de rejeição, desprezo, rivalidade, com aqueles que não compartilham das mesmas características que unem tal grupo.

Reiterando as explicações de Débora, o historiador Mateus Roque da Silva comenta que o movimento irrefletido das massas, do ponto de vista histórico, não chega ser uma grande novidade.

– Na Alemanha nazista, por exemplo, não foram homens loucos e mulheres desreguladas que promoveram o holocausto, ceifando a vida de milhares de judias e judeus, mas pelo contrário, foram os homens e mulheres comuns, cegos em seu posicionamento ideológico, que irrefletidamente agiram pelo ódio disseminado.

– O fortalecimento do bolsonarismo mostrou-se, nos últimos anos, uma réplica grosseira dos movimentos antidemocráticos do século XX. O sujeito perde sua capacidade de avaliar e sentir, de colocar-se no lugar do outro e, com isso, ações extremas tornam-se habituais – completa Mateus.


Manifestações bolsonaristas e a ‘servidão voluntária’


Retomando a explicação sobre a formação de grupos, Débora esclarece que os indivíduos se sentem autorizados a realizarem atos que não fariam sem esse suporte coletivo e que não há sentimentos de violências ou hostilidades que já não tenham sido anteriormente experimentados ou desejados por seus membros.

– Assim, podemos considerar que a comemoração das notícias falsas sobre as fraudes das eleições e a prisão de Alexandre de Moraes, são informações que distorcem a realidade factual, mas que correspondem ao desejoso sentimento de punição e violência que já habitam as aspirações individuais dos membros – diz a psicóloga.

Segundo a professora, tais atos se configuram como elementos compartilhados da cultura punição e violência trajadas pelo sentimento de segurança em torno de um líder autoritário. A doutoranda em psicanálise relembra um importante termo construído no século XVI pelo filósofo Étienne de La Boétie.

– O filósofo nos apresentou o termo ‘servidão voluntária’, que embora tenha ressalvas para o momento histórico e político com o qual as observações foram construídas, podemos resgatar sua inquietação ao se questionar sobre o porquê as massas apoiam os tiranos. Para o filósofo, esse fenômeno diz respeito aos sentimentos de submissão entre os membros que depositam na autoridade a resolução de todos os problemas ou anseios frente aos dilemas sociais.

Sendo assim, mesmo que o líder escolhido não garantisse a vida de seus cidadãos, ele continua sendo a figura sobre a qual as massas depositam a realização de seus sentimentos de segurança frente a um inimigo ficcional. No Brasil, esses rivais podem ter várias construções.

– Esse tema é passível de discussão extensa, mas para o caso em evidência, temos que a ameaça do comunismo, a ameaça da ‘ditadura gay’ pela distribuição dos fantasiosos ‘kits gays’, ou então os discursos pró-vida, que criminalizam o aborto sob quaisquer circunstâncias, mostram a contrariedade das pautas, a pouca sustentação intelectual e o parco desconhecimento desses grupos sobre as dimensões políticas de uma sociedade democrática. A eleição dessas pautas evidencia a inexistência de coerência com a realidade, e coincidência com as aspirações violentas e hostis individuais, as quais compõem um território promissor para a implantação das fake news – destaca Débora Ferreira.


Fake news e a Psicologia das Massas


De acordo com a professora, as fake news fazem parte de um discurso totalmente incoerente com a realidade. “Isso quer dizer, informações que não correspondem à realidade, mas sim, aos desejos e aspirações de ‘retradução’ dessa realidade em uma verdade que pareça ser mais próxima das impressões que o grupo está disposto a compreender sobre a realidade.”

Débora elucida que as fake news são provocativas e tocam diretamente em emoções e crenças que as pessoas já portam e estão disponíveis para serem despertadas – por exemplo, a garantia da própria segurança e ao reconhecimento de si, “o que promove aderência aos discursos de eliminação dos inimigos, ilusórios, como tentativa de segurança e garantia de sua própria vida”.

– Sendo assim, notícias falsas são um elemento perigoso de anunciação das rivalidades e construção distorcida da realidade que promove violências e pode despertar sentimentos agressivos nos indivíduos passíveis de acreditarem nessas informações. Devemos lembrar que não há sentimentos hostis implantados, mas despertados, isso quer dizer que os atos reacionários, antidemocráticos e violentos desses grupos já existiam na individualidade de seus membros, e encontram na coletividade modos de expressão e realização.

Engana-se quem pensa que as fake news fazem parte de um fenômeno atual. A psicóloga observa que o modo mais extremo em que esses atos foram estabelecidos a partir de uma política de Estado foi o fascismo e o nazismo, nos quais os grupos de extrema-direita se orientaram a fim de regular e determinar a eliminação da vida daqueles que não eram considerados como dignos de existência.

– Os atos antidemocráticos e violentos despertados pela situação política do Brasil contemporâneo, leva-nos a questionar sobre o impacto e o efeito que os ideais nazistas ainda estão inseridos nas coletividades, em que a violência e o sentimento de destrutividade passam a ser o organizador do grupo, ou um operador comum entre seus membros – conclui Débora.

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