A proibição da contratação, nomeação ou admissão de pessoas condenadas por crimes relacionados à pedofilia em qualquer área da administração municipal — cargos efetivos, comissionados, terceirizados ou de confiança — começa a ser analisada pela Câmara de Gravataí nesta semana nas comissões legislativas.
O Projeto de Lei nº 96/2025, apresentado pelo vereador Paulinho da Farmácia (Podemos), remete a debate também aberto em Cachoeirinha, que analisei em Crimes e política: Cachoeirinha avalia lei para exigir ‘ficha limpa’ para cargos de indicação política; o escândalo e a razoabilidade.
A lista de crimes tipificados na proposta vai de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal) à divulgação de pornografia infantil (art. 241 do ECA), e a restrição vale enquanto durarem os efeitos da condenação. Além disso, a lei prevê obrigatoriedade de certidões negativas de antecedentes no ato da nomeação e integração do município com o Cadastro Estadual de Pedófilos (Lei 15.130/2018).
Na justificativa o parlamentar alerta que, em 2024, o Centro de Referência às Vítimas de Violência Sexual (CRVVS) registrou mais de 3 mil atendimentos em Gravataí, sendo que 75,37% dos casos ocorreram dentro do ambiente familiar.
Na prática, a proibição já existe para cargos efetivos. Apresentar antecedentes criminais é uma das exigências para aprovados em concursos públicos. O alcance fático do projeto é estender a regra para os CC, os cargos de indicação política, e para serviços terceirizados.
Se o apelo popular é incontestável, ainda mais após as denúncias do influenciador Felca, e aprovação pela Câmara dos Deputados de projeto que combate a ‘adultização’ e pedofilia nas redes sociais, a solidez jurídica pode ser alvo de questionamentos.
É de Voltaire “O segredo de aborrecer é dizer tudo”. Então, vamos lá.
O projeto de Gravataí pode enfrentar um obstáculo conhecido: o vício de iniciativa. Assim como acontece com o PL 75/2025, que em Cachoeirinha obriga estagiários e comissionados a apresentarem antecedentes criminais –– projeto que também nasceu a partir de escândalos: as denúncias de fraudes no Bolsa Família e de casos de assédio sexual envolvendo servidores.
Tanto o STF quanto o TJ-RS têm entendimento consolidado de que normas sobre critérios de nomeação no Executivo devem ser propostas pelo próprio prefeito. Quando partem do Legislativo, ainda que bem-intencionadas, podem ser questionadas judicialmente. Em Gravataí, portanto, assim como em Cachoeirinha, os prefeitos podem vetar ou até mesmo judicializar a lei, sob o argumento de invasão de competência.
É uma conta política pesada, que pode ser resolvida com diálogo entre os poderes.
Há um ponto em que moralidade e legalidade se cruzam. A Constituição garante a moralidade administrativa como princípio, mas também assegura a presunção de inocência e a separação de poderes.
Legislar no calor de escândalos pode gerar leis punitivistas, simbólicas e pouco efetivas. Uma norma pode nascer com ampla aprovação popular e ainda assim falhar em sua aplicação prática, seja por brechas jurídicas, seja por excesso de restrição que viole direitos fundamentais.
O STF já reconheceu que é legítimo exigir certidões criminais para cargos públicos, mas apenas quando houver respeito ao devido processo legal e à proporcionalidade. Em outras palavras: não basta criar barreiras morais, é preciso calibrar a lei para que ela seja, de fato, exequível e constitucional.
Caso contrário, a frustração pode ser ainda maior — não apenas com o Legislativo, mas com o sistema político como um todo.
Ao fim, os projetos de Gravataí e Cachoeirinha refletem um dilema típico da política contemporânea: como responder a problemas reais e urgentes, sem atropelar garantias constitucionais? Uma alternativa ao vício de origem é os prefeitos enviarem projetos sobre o tema, a partir do diálogo entre os poderes que referi acima.
Restaria, ainda, mesmo nas propostas de origem executiva, a necessidade de respeitar o entendimento do STF de que a exigência precisa respeitar o devido processo legal, a proporcionalidade e a presunção de inocência.