RAFAEL MARTINELLI

Gravataí tem projeto de lei para pregar a palavra de Jesus para crianças nas casas abrigo; O Estado não é extensão da igreja, vereador pastor!

Reputo inconstitucional o Projeto De Lei 141/2023, protocolado na Câmara de Vereadores dia 5, que “autoriza a realização de trabalhos sociais de iniciativa religiosa dentro de instituições de acolhimento infantil” de Gravataí.

O Estado é laico, ok? No Brasil, desde a Constituição de 1891, que consolidou a separação entre a Igreja e o Estado.

Entendo caso para manifestação do Conselho Tutelar, do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente e do Ministério Público, pela Promotoria da Infância e Juventude, caso passe pelas comissões do legislativo e seja aprovado.

Na justificativa do projeto – de autoria do vereador pastor Fábio Ávila, do Republicanos, partido da Igreja Universal do Reino de Deus – está sua própria negação.

“Sobre a liberdade religiosa no Brasil, o artigo 11 (da Constituição de 88) diz: é dever do estado e de toda a sociedade garantir a liberdade religiosa, reconhecendo este direito a todo indivíduo, independente da origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”

Segue: “no artigo 5º da Constituição, inciso VI diz: é inviolável a liberdade e a consciência de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantido na forma da lei a proteção aos locais de culto e suas liturgias”.

Mais: “o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90, assegura o direito geral de liberdade, incluindo expressamente a liberdade religiosa nos artigos 16 e 17. Neste sentido, a própria doutrina da proteção integral das crianças e adolescentes, presente no direito brasileiro, reconhece aos menores toda a gama geral dos direitos fundamentais, incluindo-se a liberdade religiosa.

E conclui: “enfim, certifica-se nesse contexto que, garantir o conhecimento da importância da palavra de Deus para crianças e adolescentes nas instituições de acolhimento é priorizar cidadãos com autonomia na forma de pensar, decidir e solucionar conflitos na vida e na sociedade, baseado em princípios cristãos deixados pelo próprio Senhor Jesus”.

Sigo eu.

Fica parecendo que as crianças já não têm liberdade religiosa, o direito de ir e vir, de sair dos abrigos e procurar suas crenças. É preciso o Estado impor uma lei que as submeta a visitação de representantes de um credo. Que, conforme a justificativa, vão permitir “autonomia na forma de pensar, decidir e solucionar conflitos na vida e na sociedade”, mas, está lá na conclusão, “baseado em princípios cristãos deixados pelo próprio Senhor Jesus”.

Em resumo, conforme o projeto, a escolha dessas crianças será Jesus ou Jesus.

Agarro-me ao incrível deputado federal pastor Henrique Vieira, que em manifestação na Câmara Federal na discussão do projeto que proíbe o casamento homoafetivo, alertou que “o Estado não é extensão da igreja”.

Como advertiu, é arbitrário, violento, usar da paixão religiosa para, por meio do Estado e da regulação jurídica, impor uma crença ao conjunto da população; no caso, as crianças da casa abrigo.

“Se querem pensar desse jeito, pensem, mas não podem pegar isso e utilizar o Estado para, por meio da Lei, negar o direito do outro. Isso é completamente contrário à lógica do Estado laico, que pressupõe liberdade religiosa, diversidade religiosa e o respeito à não crença religiosa. Entre a crença e a Constituição, entre o que ela crê e o Código Civil, entre o que ela crê e o direito que outras pessoas têm, há uma diferença. Querem crer dessa forma? Creiam, mas sem impor ao outro”, apelou o religioso.

O pastor lembra que o estado laico foi reivindicação histórica do protestantismo – origem das igrejas neopentecostais: “o Estado é o Estado e a igreja é a igreja”.

É compreensível o interesse da IURD, maior expoente entre as igrejas neopentecostais, em influenciar o futuro de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade nas periferias do país. Tanto que a igreja tem se envolvido em eleições para conselhos tutelares, criados para defender os direitos da população carente. Em São Paulo, metade dos conselheiros tutelares são ligados à Universal. Em Gravataí e Cachoeirinha, as primeiras colocadas na votação do dia 1º também.

Mas podem fazer isso da porta para fora dos abrigos.

Aprovado o projeto, institui-se em Gravataí uma espécie de volta ao Império, onde o artigo 5º da Constituição de 1824 preceituava que “a religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império”. No Império das Casas Abrigo, o privilégio será evangélico.

Ao fim, parece-me clara a Constituição de 88, que proíbe o Estado de adotar uma postura antireligiosa, mas também proíbe que o Estado apoie qualquer corrente religiosa. Em resumo, Estado laico é Estado neutro.

Pelo que sei, Jesus ao aparecer criou seu reino espiritual na Terra, fazendo com que os homens dividissem suas preocupações entre a pátria terrena e a pátria celeste. Foi o cristianismo o mar que se abriu para promover a separação entre o sistema teológico e o sistema político.

Retira o projeto, vereador, não exponha seus colegas às vésperas do ano eleitoral!

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