A guia turística Nara Vergínia Fraga Silva, de 66 anos, não esconde a indignação. Fiel ao médium João de Deus, ela não crê no que tem visto nos últimos dias.
— Como assim, mais de 300 mulheres abusadas? Faz 23 anos que frequento a casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia, e nunca percebi nada de estranho. Nunca houve reclamações lá ou fora de lá que tenham chegado a mim. Isso é mentira, e a verdade aparecerá. Não vai demorar muito. Não é no homem que eu acredito. Eu acredito é na entidade — diz a responsável pelas viagens que seguiam de Gravataí para o interior de Goiás com passageiros interessados nos atendimentos do médium, agora preso, após as denúncias de abuso contra mulheres durante os atendimentos.
LEIA TAMBÉM
O gravataiense que viu o médium operar
Uma hora com o médium que preside a Assembleia
Desde que as denúncias estouraram contra o médium, o Ministério Público do Rio Grande do Sul também passou a receber os casos de gaúchas supostamente abusadas. Até o final da última semana, 12 denúncias foram formalizadas no estado, segundo o MP. Os casos serão remetidos ao MP de Goiás, que está liderando as investigações e foi quem solicitou a prisão de João de Deus, cumprida no domingo. Ele depôs e negou as acusações.
: Multidões frequentam mensalmente a Casa Dom Inácio de Loyola em busca de cura
O clima em Gravataí, segundo Nara, é de consternação. Até outubro, pelo menos uma vez por mês, ela partia com 35 passageiros — por vezes mais, já chegou a transportar dois ônibus em uma viagem — rumo à casa de João de Deus.
— É um público fiel. Eu diria que 90% retorna, então, desses 35 de cada viagem, muitas vezes eram os mesmos voltando para lá, e agora, todos com quem eu conversei estão com a mesma sensação de indignação contra essas denúncias — conta.
Por telefone, uma das suas passageiras chegou a chorar neste domingo.
Uma cidade em colapso
São freqüentadores que faziam a economia de Abadiânia, cidade de apenas 17 mil habitantes no interior de Goiás, girar. A estimativa é de que mensalmente, 10 mil turistas — 40% estrangeiros — frequentavam a cidade em busca dos atendimentos de João de Deus mensalmente. De acordo com a administração municipal, pelo menos metade do comércio local depende diretamente da Casa Dom Inácio de Loyola e o setor de hospedagens, nem se fale.
— São pousadas que só existem por causa da Casa. Se acabar, como estão querendo que aconteça, o que vai ser dessas pessoas? — lamenta a guia turística.
Fortuna rastreada
Toda a polêmica atual, sustenta Nara, está centrada no dinheiro. Ela acredita que os R$ 35 milhões rastreados pelo Coaf a partir de saques do médium nada têm a ver com a Casa Dom Inácio de Loyola.
— Ele não cobra nada. Ao contrário, pode ter mil pessoas aguardando atendimento e eles dão alimentação a todos, de graça — diz.
O dinheiro do médium João de Deus, ela conta, vem da época em que ele foi garimpeiro. Diz a história sempre contada em Abadiânia que ele encontrou uma esmeralda, e que a pedra continua com ele, mas lhe rende uma fortuna milionária, segundo seus seguidores, agora cobiçada por parentes. Entre as supostas vítimas de estupro está a filha do médium.
Da cura ao turismo
Para Nara, a relação com Abadiânia vai bem além dos negócios. Em 1995, ela chegou à Casa Dom Inácio de Loyola desenganada por nada menos que 14 médicos. Sofria de endometriose no último grau, com aderência total de intestino, fígado e pulmões. Buscou o atendimento espiritual e, garante, foi curada.
— Eu encontrei lá as respostas que os médicos aqui não conseguiam me dar. Por isso, eu acredito nas entidades. Ele só faz o bem, até hoje — conta.
: Nara Vergínia buscou atendimento 23 anos atrás, desde então, passou a levar gravataienses a Abadiânia
Na época, Nara Vergínia era funcionária pública e estava afastada pelos problemas de saúde. Aposentou-se em 1999, e como as viagens para Goiás tornaram-se sua rotina, resolveu cursar Turismo pelo Senac. Formada, tornou-se a guia oficial para este roteiro em Gravataí. Na verdade, este e outros roteiros no turismo religioso.
É sob o comando de Nara que gravataienses visitam Aparecida, no templo de Nossa Senhora. E também visitavam a casa de Chico Xavier, no interior de Minas Gerais.
— Eu estava lá no dia em que o Chico faleceu — lembra.
Mas ela nem cogita perder o convívio com o médium João de Deus. Na verdade, já tem até data marcada para depois que se recuperar de uma cirurgia na coluna, feita dias atrás.
— Dia 10 de fevereiro estarei em Abadiânia, e tenho certeza que vou encontrar ele lá. Vou pedir perdão pelo que essas pessoas estão fazendo com o João de Deus.
PARA DENUNCIAR
: O Ministério Público gaúcho abriu um canal para denúncias de supostos abusos cometidos pelo médium João de Deus. Para denunciar, é preciso procurar o canal de denúncias do MP, ou dirigir-se pessoalmente à promotoria mais próxima.