3º Neurônio | crônica

Há algo de podre no reino de Pindorama

Provo a água da torneira – tem gosto e cheiro de podre. Faz meses que tem gosto e cheiro de podre. Mais um tempo e pensaremos que nos enganaram na escola: água nunca foi incolor, muito menos insípida e inodora. Já não sinto o cheiro no banho e, ao escovar os dentes, já não bochecho com a mesma rapidez e não faço mais caretas. Confesso, estou com medo – vou acabar bebendo essa porcaria.

A água tem gosto e cheiro de podre devido à incompetência e descaso das autoridades municipais, muita gente me disse. Não acredito. Quer dizer, sei que essas autoridades são incompetentes e desleixadas, mas acho que elas são autoridades justamente por serem incompetentes e desleixadas. Não é por acaso, foram escolhidas a dedo, como se diz. Essas autoridades, como muitas outras, pra não dizer quase todas, não seriam nada num mundo em que se quebrasse o pau caso a água deixasse de ser incolor, insípida e inodora. Essas autoridades são pequenas peças numa engrenagem muito complexa formada pelo que pode ser ilustrado por uma frase popular: foda-se, meu pirão primeiro.

Os rios estão podres? Foda-se, continuarei ganhando montanhas de dinheiro e beberei água mineral. Quando a água mineral estiver toda contaminada? Foda-se, já estarei morto e enterrado – e num caixão de madeira de lei, de uma espécie extinta.

Nos últimos tempos sinto que esse gosto e esse cheiro de podre se alastram por tudo, dia a dia, com tanta desenvoltura que muita gente nem percebe ou acha natural. Vamos, olhe o supermercado, olhe a justiça, olhe esse cachorro, olhe a imprensa. Vamos, olhe essas nuvens e a lua cheia, ali no horizonte, viu?

Vamos à seção de frutas e legumes. Lindo o tomate, não? Mas não tem gosto de tomate e é puro pesticida. Essas laranjas aí têm gosto de remédio no melhor dos casos, o moranguinho parece de plástico, mas até plástico apodrece, basta dar tempo. Sabe que um juiz condenado por vender sentenças tem uma pena brutal? Aposentadoria com vencimentos integrais. Tenha cuidado, nunca seja réu, você que não é juiz. O cachorro – não é sarna, não, é a convivência com a gente, os produtos que você usa no banho dele. A imprensa parece saída do romance A penúltima verdade, de Philip K. Dick, onde publicitários criam um mundo paralelo pela televisão, pra manter os escravos submissos num subterrâneo. Essas nuvens não parecem suspeitas? São enxofre puro. A lua cheia – com certeza essas manchas não são o perfil do São Jorge. São a gangrena, meu bem.

Eu exagero? Tenho medo de me olhar no espelho e notar sinais da podridão avançando em mim, como vi em muitas pessoas que conheço de perto, umas de que eu gostava. Tenho medo do que escrevo – vá que eu enfileire palavras podres pensando que as colhi agora mesmo.

Ao lado da minha casa há uma pracinha. Vejo crianças nos balanços, no escorregador, na caixa de areia e no trepa-trepa – me dá uma pena, porque a alegria delas tem de abrir caminho por um ar pobre também, ar que é uma gosma fétida que poderia ser cortada com uma pá e levada por caminhões – mas pra onde, me diga? É bem provável que quando essas crianças forem adultas, a alegria delas já esteja tão podre como a água, as nuvens e a lua cheia. Se não tomarem cuidado, elas mesmas estarão podres como as autoridades responsáveis pela água.

Eu desesperado, desiludido, exausto? E você? Se acha que está tudo bem, como quer Deus e seus profetas, das duas, uma: ou você é um idiota ou acabou de entrar na minha lista de suspeitos.

 

Ernani Ssó é escritor.

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