Este ano estarei na Flipinha, e o pessoal me pediu que ajudasse na divulgação. Como não sei fazer isso, apenas transcrevo dois trechos de uma entrevista que fizeram comigo para me apresentarem para os professores. Dispensei o que havia de biográfico e fiquei no que interessa, a leitura.
Saramago diz que “a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar”. Sua infância no campo, longe do centro urbano, te dá muitos elementos para a construção das suas histórias?
Pensando hoje, acho que eu era um leitor do tipo do Dom Quixote. Depois de ler as aventuras de Robinson, eu queria viver coisas assim, emocionantes, mas, sem a coragem de Dom Quixote, não saí pelo mundo em busca de donzelas desamparadas e de gigantes desaforados. Preferi escrever, quer dizer, imaginar essas aventuras. Acho que era uma fuga da vida chata e complicada que eu via ao redor. Mas aos poucos o que era fuga se tornou aproximação, na medida em que a literatura foi me esclarecendo, se tornando mais complexa. Quer dizer, o campo teve sua parte, mas a maior foi da vida em geral. Acho a realidade excessiva: ninguém aguenta a realidade 24 horas por dia. Daí o sonho, a literatura, o cinema, a arte. Brincamos com modelos mais funcionais da realidade como a criança brinca pra poder encarar a realidade e, se der no jeito, modificá-la. Sem falar que através da literatura podemos viver coisas que ninguém precisa viver, como matar ou ser morto.
Em sua opinião, qual o principal desafio dos professores para a formação do leitor nos dias de hoje?
A primeira coisa que me ocorre é que devemos, professores e escritores, parar de falar em criar o hábito de leitura. Hábito é escovar os dentes, coisas assim, meio mecânicas, que se faz sem pensar. Se a leitura fosse um hábito, tanto fazia ler a revista Caras ou Julio Cortázar, bula de remédio ou Stendhal, Paulo Coelho ou Tchekhov. A leitura é uma aventura emocional, intelectual e lúdica. O que devemos criar é o gosto pela leitura.
As crianças precisam descobrir que os livros são divertidos, que mexem com nossa cabeça e nossas emoções mais profundas. Mas atenção: não todos os livros. Há muitos livros chatos, medíocres, pernósticos, metidos. Acho que não se pode falar do livro como algo sagrado, o livro em maiúscula. O aluno tem de ter liberdade de não gostar e de criticar. Não interessa se sua crítica está errada. Ele tem de discutir, defender sua opinião contra as opiniões de outros e talvez aí descobrir se está errado ou não.
Cada livro é um indivíduo e assim deve ser tratado. Como cada leitor é um indivíduo também, muitas vezes os santos deles não se cruzarão. Nem todos os livros foram feitos para nós, como dizia Borges. Um livro que eu considero maravilhoso pode ser uma desgraça para outra pessoa. O leitor tem de encontrar os seus livros.
Os professores precisam levar em conta sempre essa diversidade. Não adianta dizer que um livro é importante, é profundo, é sei lá o quê. Pode não me dizer nada, não é? E esse não me dizer nada pode ser por não bater com meu temperamento ou eu não estar na idade intelectual certa pra ele. O gosto pela leitura é feito por contágio. Se topamos com um livro que amamos ou nos desafia, pronto, estamos fisgados. Enfim, o que se chama leitura obrigatória na escola me parece um erro imenso, nos anos de formação. Esse erro é maior ainda quando o livro tem a concorrência da televisão, da internet e dos videogames, que podem muito bem suprir nossa ânsia por ficção – e, pior, pode destruir nossa imaginação e incentivar a tendência que a maioria de nós tem de se acomodar.
Ernani Ssó é escritor, vive em Porto Alegre. Colabora com os sites Coletiva Net e Sul21, e agora virou colaborador fixo do Seguinte: