Recomendamos o artigo de Lenio Streck, jurista, professor, doutor em direito, autor de “Hermenêutica Jurídica E(m) Crise e Verdade e Consenso”, publicado pelo Consultor Jurídico (Conjur).
As duas lendas sobre a origem da hermenêutica: Hermes mensageiro ou delinquente?
Na mitologia, Hermes era um semideus que fazia a intermediação entre os deuses e os mortais. Só que nunca se soube o que os deuses disseram; só se soube o que Hermes disse que os deuses disseram.
Outra versão diz que Hermes era um delinquente; nasceu na forquilha de uma árvore e de imediato subtraiu o rebanho do irmão. Para não ser encontrado, amarrou em cada rabo vacuno um galho de árvore. Para apagar os rastros.
Dependendo de como se olha, hermenêutica é uma delinquência. Rouba sentidos. Diz o que quer. Dá o drible da vaca. O dilema é: controlar Hermes, para que não vire um ditador.
Na literatura, o personagem Humpty Dumpty, de Alice Através do Espelho, de Lewis Carrol, dá às palavras o sentido que quer. Há, aqui, uma crítica à hermenêutica dos sofistas…!
O tuíte do general e o fantasma do artigo 142
Pois no Brasil parece que as Forças Armadas se arvoram em novos hermeneutas. Com a vantagem de não serem — e não terem — intermediários. Eles mesmos dão o sentido sem floreios. Sem precisar atar galhos no rabo do rebanho. Afinal, (de)têm a força.
Leem a Constituição como se lhes dá na telha. Dizem que o artigo 142 da Constituição lhes dá o poder de moderação, algo como “todo o poder emana das Forças Armadas”. Aliás, como já disse o STF em julgamento, pretender que as Forças Armadas sejam uma espécie de poder moderador é um terraplanismo jurídico (voto do ministro Barroso).
Ademais, pudesse o artigo 142 ser lido no modo como querem os militares e alguns juristas como Gandra e Adilson Dallari (dia 15/11 fiz debate com Dallari na CNN e ele insistiu na tese interventiva do artigo 142), a CF teria sido reescrita e passaríamos a ler que “todo o poder não emana mais do povo, por meio de seus representantes e, sim, das Forças Armadas”, que se constituiriam em um meta-poder de Estado.
Sobre as leituras da CF, lembro que, antes do julgamento do famoso Habeas Corpus de Lula, em 2018, o general Villas Bôas mostrou o argumento da força, admoestando o Supremo Tribunal. Se o filósofo Danahuer foi o primeiro a tematizar a hermenêutica na modernidade, Villas Bôas deixou-o nas chinelas. Sem maiores “epistemologias”, fez um “alerta” à Suprema Corte, usando, em vez da força da hermenêutica, a hermenêutica da força. E vimos o resultado.
Agora, passada a eleição, quando deveria vir a bonança da democracia, retornam os novos hermeneutas. Ou deuses. Desta vez lançam nota que coloca combustível na tempestade que substitui a bonança.
O novo tuíte do mesmo general
A história se repete. Não vou nem dizer como. É clichê. E não curto clichês. Mas o general Villas Bôas volta ao cenário. Em 2018 ele constrangeu o STF. Na verdade, ameaçou. Agora, volta à carga, com novo tuíte. Com discurso incentivando o golpismo — conforme análise de todos os jornais (devem ser todos comunistas, diria o general).
A hermenêutica fatiada da lei
Fazem uma leitura seletiva da nova Lei 14.197/2021 que diz que “não constitui crime […] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais”.
Pela hermenêutica verde-oliva, eles, os militares, são os defensores dos manifestantes que fazem manifestações pacíficas. Dizem que os protegerão, desde que não façam arruaça. O que é isto — a “arruaça”? Perguntemos aos hermes camuflados. Acham que são os próprios deuses e criam os próprios sentidos.
Qual é a parte que ficou de fora da hermenêutica verde-oliva? Simples. O dispositivo da nova Lei não foi feito para servir de haraquiri. Por isso foi posto, no final do artigo, que as manifestações pacíficas seriam toleradas sempre que fossem com “propósitos sociais”.
Ora, não consta a ninguém do mundo jurídico que movimentos que clamem pelo fim da democracia, com a intervenção deles mesmos, os militares, sejam considerados com “propósitos sociais”. E não consta, em nenhuma hermenêutica, que “manifestação crítica aos poderes” possa significar “acabar com esses Poderes”. Ora, essas movimentações pretendem sabotar a democracia.
A elipse verde-oliva
Mas há ainda uma outra coisa, digamos assim, “elipsada” (algo que fica escondido na linguagem) na nota. Qual é?
Simples. A nota abre a porta para que o Congresso vá para cima do Supremo. Esse é o busílis. O não dito. O silêncio eloquente. O “elipsamento”.
Leiamos essa parte da nota:
“Como forma essencial para o restabelecimento e a manutenção da paz social, cabe às autoridades da República, instituídas pelo Povo, o exercício do poder que ‘Dele’ emana, a imediata atenção a todas as demandas legais e legítimas da população, bem como a estrita observância das atribuições e dos limites de suas competências, nos termos da Constituição Federal e da legislação.”
A nota faz um apelo ao Legislativo, o que de novo pode ser lido como um pedido para impedir as seguidas interferências do Judiciário em outros Poderes:
“Da mesma forma, reiteramos a crença na importância da independência dos Poderes, em particular do Legislativo, Casa do Povo, destinatário natural dos anseios e pleitos da população, em nome da qual legisla e atua, sempre na busca de corrigir possíveis arbitrariedades ou descaminhos autocráticos que possam colocar em risco o bem maior de nossa sociedade, qual seja, a sua Liberdade.”
Portanto, há dois aspectos a serem ressaltados: o primeiro diz respeito à hermenêutica que os militares fazem da Lei de Defesa do Estado Democrático, equiparando manifestações (golpistas) que pedem intervenção deles — militares — a “manifestações democráticas”. Ora, não é disso que trata a lei. Hermes, aqui, furtou todo o rebanho.
O segundo aspecto que exsurge da nota dá um “recado” (elíptico) ao legislativo e reforça, como efeito colateral, manifestações contra o TSE e STF, o que se pode ver inclusive nos eventos de Nova York e a cotidiana catilinária contra os ministros da Suprema Corte. Rádios e TVs Brasil afora ainda estão em campanha, por assim dizer.
Numa palavra final: e o Ministério Público? E o artigo 127 da CF?
Assim não há institucionalidade que funcione. Esperava o firme posicionamento da Procuradoria Geral da República. Aliás, do MP como um todo. Afinal, na Constituição consta, com todas as letras, que o Ministério Público é o guardião e fiscal do regime democrático. E não consta que regime democrático seja algo que conviva com a sua antítese: o golpismo contra a democracia. Os ataques ao STF e aos ministros da Corte deveriam ser tidos pelo MP como um ataque a ele também. Mas parece que o MP olha para esses ataques como outsider.
De todo modo, leio que, finalmente, o MPF pede a suspensão do chefe da Polícia Rodoviária Federal. Se o MPF processar os líderes e financiadores desses atos com base no artigo 359 do CP (nova lei do Estado Democrático), tenham a certeza que os manipulados abandonam os bivaques.
Se a força vale mais do que a lei e a Constituição, então já não temos direito. Pois é ele que filtra e controla a força. Imagine se fosse o MST acampado à frente dos quarteis…! Os sem terras seriam tirados à tapa. Com o aplauso das vivandeiras que bulem com os granadeiros. Os bivaques seriam liberados em minutos.
Quando os militares se transformam em “deuses intérpretes” da Constituição, há que se perguntar onde foi que erramos. Fracassamos mesmo?
Em uma democracia, quem têm armas não decide e quem decide não tem armas. Caso contrário, se quem têm armas decidir, já não há nem mais quem decida.
Por isso, não se pode dizer qualquer coisa sobre as leis e a Constituição. Sempre há limites. Só para Humpty Dumpty que não. Porque ele dava às palavras o sentido que bem queria. Inclusive à palavra democracia…!