RAFAEL MARTINELLI

Julgamento é um golpe na utopia autoritária brasileira, que quer sobreviver

Associo-me ao jornalista Reinaldo Azevedo em seu artigo Julgamento é um golpe na utopia autoritária brasileira, que quer sobreviver, publicado pelo UOL. Sigamos no texto:

Já escrevi algumas vezes que o adjetivo “histórico” costuma ser malbaratado por aí, sendo tomado como sinônimo de inédito. O julgamento, na vigência da democracia, de réus que tramaram um golpe de estado é inédito e histórico porque marca um tempo, um período, uma era, uma escolha política e civilizacional. Apelando à expressão popularizada pelo presidente Lula, “nunca antes na história deste país”, os golpistas tiveram de se haver com seus feitos, arcando com as consequências de seus atos. E isso vai acontecer agora.

Já recomendei aqui que leiam o excelente livro “A Utopia Autoritária Brasileira”, do historiador Carlos Fico, que tem como subtítulo “Como os militares ameaçam a democracia brasileira desde o nascimento da República até hoje”. E isso sempre se deu à sombra da impunidade. Mais: alimenta-se, em certos círculos, a fantasia de que golpes e tentativas não foram violentos; de que o Brasil teria, na expressão de certo autor, uma “história incruenta” — isto é, sem sangue. Como se a violência institucional devesse permanecer impune. E aí escreve Fico na página 368:

Entretanto, descrevi uma série de episódios em que houve confronto armado: nas fracassadas tentativas de golpe de 1904, 1922 e 1924; na vitoriosa mobilização de 1930 e nas duas tentativas malsucedidas contra JK em 1956 e 1959. Além disso, embora não tenha havido confronto, houve movimentação de tropas na Proclamação da República, nas deposições de Vargas, durante os golpes de Lott, no pronunciamento de 1961 e no golpe de 1964. A geração militar dos “tenentes” interveio na política sob a justificativa de lutar pelo “propósito de regeneração dos costumes políticos”, de acordo com o brigadeiro Eduardo Gomes. Seu companheiro, o general Juarez Távora, também assumia para si essa missão salvadora: “Essa obra de salvação nacional tem de ser realizada pela nossa geração”. Contudo, essa justificativa era tão inconsistente que Távora, anos depois, decidiu “não mais participar de conjurações para tentar corrigir, por meio de intervenções extralegais, os erros ou omissões de nossos governantes”. Ele fez a promessa de não mais recorrer à força quando soube do suicídio de Vargas, mas a descumpriu ao apoiar o golpe de 1964. Ao longo da ditadura militar, essa perspectiva salvacionista deu lugar a motivações mais concretas, referidas ao simples usufruto do poder: boquinhas, sinecuras e prebendas cuja defesa também está por trás das tentativas mais recentes de intervenção militar. Hoje em dia, a manutenção dos privilégios de sua previdência especial preocupa mais os militares do que quaisquer motivações doutrinárias ou ideológicas.

Inexiste, pois, golpe ou articulação em favor dele que não sejam necessariamente violentos. Os golpistas sempre sustentaram a falácia de que se apelou à força para impedir o mal maior, o “banho de sangue”. Ou por outra: batem o porrete na mesa e ainda esperam que sejamos gratos por sua benevolência supostamente salvadora.

O julgamento que começou hoje vem justamente para mudar essa escrita, dando concretude à Constituição de 1988. A história do Brasil não foi um domingo ensolarado nesses 37 anos. Tivemos dois impeachments, três ex-presidentes presos, julgamentos ruidosos no STF… Independentemente da justeza ou não de cada ocorrência — é há muitas aberrações, a começar da condenação de Lula sem provas —, tivemos por muito tempo a certeza de que a democracia suportava os testes a que era submetida. Mesmos os maus testes.

Mas passamos pela conjunção de eventos tenebrosos, que desarranjaram o ecossistema da política, levando o país à beira do golpe. A Lava Jato promoveu a depredação das instituições, e uma personagem do mau folclore da vida pública brasileira — Jair Bolsonaro — fez-se a voz da candidatura antissistema, conjurando todos os reacionarismos e ódios, dos adormecidos aos despertos, contra os valores mais comezinhos da democracia. Já havia sementes de golpismo nos seus dois discursos de posse — o oficial e do parlatório — pronunciados no dia 1º de Janeiro de 2019. E ele não parou mais.

Acabou arrastando na sua aventura militares da ativa e da reserva, que também serão julgados. E, como o esperado, apareceu de novo a questão da “história incruenta”. Flagrados, os golpistas indagaram: “onde estão as armas, onde estão os tanques?”, como se não houvesse provas de sobra da urdidura golpista. Se foram incompetentes e não obtiveram êxito, bem, isso já é outra história.

O Brasil, a partir das 9h, renova o seu pacto com a democracia. E os que falam em indulto ou em anistia, a exemplo do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas — que ambiciona o lugar de Bolsonaro na extrema direita — querem o país atado àquela que era a sua pior tradição: a garantia de impunidade aos golpistas. A isso “uzmercáduz” chamam modernidade. A modernidade das catacumbas.

Concluo.

Chegamos a esse dia em razão da firmeza do Supremo Tribunal Federal na defesa da democracia e das instituições. E, por óbvio, um ministro merece ser saudado por todos aqueles que repudiam a ditadura e os afascistados: Alexandre de Moraes.

A conversa de que o tribunal recorreu a práticas excepcionais para punir o golpismo e garantir a democracia é uma falácia. O tribunal fez-se o pilar inabalável da ordem democrática, mas rigorosamente dentro dos marcos legais.

Foi o mais duro teste desde a redemocratização. E os fascistoides perderam.

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