O juiz Régis Pedrosa Barros, da 4ª Vara Cível Especializada em Fazenda Pública da Comarca de Gravataí, não aceitou pedido de reintegração de auditor tributário concursado que, mesmo absolvido em processo administrativo disciplinar, foi demitido em janeiro pelo prefeito Luiz Zaffalon (PSDB) após vazamento de conversas em grupo de WhatsApp denominado “A Fazenda”, que reunia servidores da Secretaria da Fazenda.
O caso ganhou repercussão estadual na reportagem de GZH Prefeito de Gravataí demite dois servidores municipais após vazamento de conversas de grupo de WhatsApp.
Na decisão liminar desta quarta-feira, a que o Seguinte: teve acesso, o magistrado considera lícito o extrato de mensagens da rede social, principal pilar do relatório de absolvição, identifica falhas na sindicância que absolveu o auditor e considera que a pena aplicada respeita a legalidade e se deu principalmente por “incontinência pública e conduta escandalosa” e não por eventuais danos à administração pública em suposta conspiração no grupo de bate-bapo.
O juiz entende que, ainda que o grupo de WhatsApp tenha se limitado a conjurações acerca de movimento grevista ou de operação-padrão, “a decisão condenatória está fundada em (a) incontinência pública e conduta escandalosa (art. 13, IV, da lei de regência)”, o que, conforme decisão do STJ, pode ser considerada tanto de forma pública, como reservadamente, caso em momento posterior chegue ao conhecimento da administração pública.
“Afora a alusão à (b) violação da proibição constante do inciso VI do art. 5º (“referir-se de modo depreciativo ou desrespeitoso às autoridades públicas ou aos atos do Poder Público, mediante manifestação escrita ou oral”), haja vista as manifestações injuriosas “Davi fdp” (Davi Severgnini filho da puta, referindo-se ao secretário municipal, aparentemente) e “pnc do zaffa” (pau no cu do Luiz Zaffalon, em referência, ao que parece, ao prefeito) contra superiores hierárquicos a quem deve guardar acatamento, assim como do (c) dever do inciso IX do art. 4º (“manter conduta compatível com a moralidade administrativa”), dentre outras, para o que não se fariam necessários atos concretos de execução, consumando-se, em princípio, tão somente com as falas dos auditores processados”, acrescenta o magistrado.
O juiz não concorda com o relatório da comissão processante, que entendeu que “o homem médio tende a hipérboles linguísticas e eventuais impropérios” quando em ambiente de “ânimos inflados por descontentamentos de qualquer ordem”.
“No caso, está-se diante de servidores públicos de elevada categoria (auditores tributários) que estão, como dito há pouco, sob regime de sujeição especial perante a Administração Pública, consoante rígido estatuto funcional, de maneira que não me parece pertinente a invocação do homo medius, do padrão normal dos membros da sociedade quando estão a discutir questões dentro de sua esfera de liberdade”, considera.
“A Fazenda“
O prefeito determinou em janeiro deste ano a demissão de dois auditores tributários concursados, contrariando o relatório de uma comissão processante que considerou as provas ilegítimas e recomendou a absolvição dos funcionários por unanimidade.
Os servidores integravam o grupo “A Fazenda”, criado durante uma campanha salarial em março de 2024 para discutir reivindicações da categoria, como reajustes de 50% e melhorias estruturais. Nas conversas, que circularam entre março e maio daquele ano, alguns participantes mencionaram a possibilidade de uma “operação padrão” – protesto que tornaria o atendimento ao contribuinte mais lento caso as demandas não fossem atendidas.
Ali também foram compartilhadas as mensagens de insubordinação e ofensas ao prefeito e ao secretário da Fazenda, Davi Severgnini.
Demissão como pena legal
O magistrado não identifica ilegalidade na dosimetria da pena aplicada pelo prefeito (a demissão), que justificasse a interferência do Judiciário em decisão administrativa do Executivo.
“Ressalte-se, por fim, que a adequação típica, bem como a dosimetria da pena, especialmente o juízo quanto à gravidade das condutas, foi operada pela Administração na margem de autonomia que a Constituição lhe reserva, algo que, em linhas gerais, não é sindicável nesta sede – que não é instância revisional, vale salientar -, pois, à primeira vista, não se tem flagrante ilegalidade, teratologia ou manifesta desproporcionalidade da sanção aplicada”, decide.
Com base em súmula do STJ, o juiz conclui que o prefeito não poderia aplicar pena diversa da demissão, tal o enquadramento do auditor em “condutas graves”.
“A autoridade administrativa não dispõe de discricionariedade para aplicar ao servidor pena diversa de demissão quando caracterizadas as hipóteses previstas no art. 132 da Lei nº 8.112/90″. No caso concreto, há imputações do que a lei de regência denomina em seu art. 13 de “condutas graves”, para as quais está reservada a pena de demissão (art. 9ª, § 3º), não havendo, pois, indicativos de manifesta desproporcionalidade da sanção”, observa, na decisão liminar.
Conversas de zap como prova lícita
Na decisão liminar, o juiz considera lícito o extrato das conversas travadas pelo servidor no grupo “A Fazenda”. A defesa alega violação da garantia constitucional do sigilo das comunicações.
“Tratava-se não de um grupo de pessoas que nutriam intimidade entre si, mas, sim, de colegas de trabalho, do qual fazia parte praticamente toda a categoria dos auditores tributários municipais. À semelhança de uma reunião assemblear de uma entidade de classe, o que se discutia ali era a rotina funcional e as aspirações da categoria. Portanto, discussões de caráter público e, em certa medida, em público”, observa.
Conforme o magistrado, não cabe uma expectativa de confidencialidade, já que os participantes do grupo não discutiam questões de foro íntimo – ainda mais em um canal de comunicação em que é notória a possibilidade de encaminhamento para terceiros das mensagens ali postadas.
O juiz também observa que o município não obteve informações ligadas à vida privada dos auditores, mas dados que demonstravam supostas infrações disciplinares, ou seja, informações com reflexo na Administração Pública.
“Assim, não se cogita, em uma primeira aproximação, de devassa em desvio de finalidade, com o propósito de tão somente perseguir desafetos políticos, mas de resguardo do interesse público”, entende, citando jurisprudência de tribunais superiores que decidiram pela validade da prova fornecida por um dos interlocutores da conversação – como foi o caso.
O juiz entende que a auditora que vazou as mensagens para o prefeito é servidora pública e, como tal, pode ter agido com base no dever legal de levar ao conhecimento da autoridade superior as irregularidades de que tiver ciência, sob pena de cometer infração administrativa (art. 16 da Lei Municipal 4.472/2022) e de incorrer em condescendência criminosa (art. 320 do CP).
“Nessa lógica, ainda que se estivesse em ambiente de confidencialidade, eventual ilicitude seria descaracterizada, visto que, ao que parece, o propósito da divulgação foi o resguardo do interesse público e a preservação dos direitos da própria servidora”, considera, citando decisão já chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça e lembrando que os servidores públicos figuram na, conforme a doutrina, relação de sujeição especial.
Isso significa que, em certos casos, servidores públicos tem uma limitação de seus direitos fundamentais em virtude de uma relação jurídica específica que possuem com as instituições estatais. O que impõe um conjunto de deveres e de obrigações mais abrangentes do que às pessoas em geral, para o adequado funcionamento de instituições do Estado.
“Portanto, em que pese ser um grupo restrito, não se encontrava sob reserva de intimidade, razão por que não diviso, em cognição sumária, ilicitude nas provas dali extraídas e que levaram à deflagração do processo disciplinar”, avalia.
Onde a sindicância não andou bem
O juiz adverte ainda para ponto que considera pouco explorado nos depoimentos colhidos na sindicância: “Deveras, a decisão do prefeito, que não está adstrita ao relatório da comissão processante (art. 156, II, Lei Municipal 4.472/2022), foi exaustivamente fundamentada, baseada em documentação e depoimentos, estes, aliás, pouco densificados no relatório, no que tange tanto às declarações do processado no grupo “A Fazenda” como ao próprio desempenho de suas funções, a exemplo do descadastramento – estranhamente enquanto gozava férias, a pretexto de realizar testes – de auditores do sistema vinculado ao Simples Nacional, fato por ele confessado”.
A confissão está em e-mail funcional enviado pelo servidor aos colegas auditores.
“Nesse particular, a comissão processante é que aparenta não ter andado bem, uma vez que confirma a autoria do auditor com relação às alterações no sistema, cuja confissão até registra, mas deixa de opinar pela sua responsabilização apenas porque o servidor posteriormente veio a corrigir a mudança nos perfis e disso não resultou prejuízo ao erário, como se isso apagasse o ilícito funcional já consumado”, aponta o magistrado.
Do reality para a realidade
A decisão do juiz de Gravataí que, salvo melhor juízo, desmonta as teses da sindicância e da defesa do auditor, é liminar e cabe recurso ao Tribunal de Justiça.
Certeza apenas que é um caso com potencial para repercussão nacional, já que, entre direitos e deveres dos servidores públicos, trata sobre limites à consagrada estabilidade de concursados.
Ao fim, a justiça vai decidir, para além de danos já mensuráveis à administração pública, se linguajar e tratamentos que cabem em desinteligências comuns em reality shows, como “A Fazenda”, restam adequados em manifestações de servidores públicos sobre seus chefes de turno – ao vivo ou nas redes sociais.