RAFAEL MARTINELLI

Justiça federal garante permanência de indígenas em área sob disputa fundiária no Mato do Júlio, em Cachoeirinha; entenda

Imagem do documentário Retomando Raízes, sobre indígenas do Mato do Julio

A 9ª Vara Federal de Porto Alegre decidiu manter suspensa a reintegração de posse de duas glebas de terra localizadas no Mato do Julio, em Cachoeirinha, ocupadas por famílias indígenas do povo Mbyá-Guarani desde 2021. A decisão foi proferida pelo juiz federal substituto Bruno Brum Ribas, em processo movido pela empresa Habitasul Desenvolvimentos Imobiliários S.A., que reivindica a posse das áreas registradas sob as matrículas nº 2838 e 3480.

A ação foi ajuizada após a ocupação da área pelos indígenas, identificada por eles como Tekoa Karanda, um território de importância histórica, cultural e espiritual para o povo Guarani. A empresa autora solicitou reintegração imediata, alegando prejuízos materiais e ambientais, mas a Justiça entendeu que o caso deve aguardar decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata do Tema 1031 da repercussão geral, referente ao marco legal das terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas.

Interesse indígena e suspensão nacional

A disputa fundiária está vinculada a uma pauta mais ampla que tramita no STF, cujo desfecho afetará diretamente os critérios de reconhecimento e posse de territórios indígenas em todo o país. Em razão disso, o Supremo determinou, desde 2020, a suspensão nacional de todas as ações possessórias e de anulação de processos demarcatórios, como é o caso da ação movida pela Habitasul. O julgamento ainda não foi concluído e permanece pendente, com embargos de declaração ainda sem data para análise.

O juiz Bruno Ribas ressaltou que a suspensão do processo é obrigatória e não pode ser revista pela instância inferior. Também negou novo pedido de liminar da empresa, afirmando que não há fatos novos que justifiquem o restabelecimento da ordem de reintegração de posse, anteriormente revogada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

Território em processo de reconhecimento

O local ocupado pelos Guarani está atualmente sob análise da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) em um processo administrativo de identificação e delimitação da Terra Indígena Karandaty (SEI nº 00613.022998/2021-28).

A FUNAI deverá, segundo a decisão, ser incluída formalmente no polo passivo da ação e apresentar estudos técnicos e antropológicos sobre a área.

Além disso, o Ministério Público Federal (MPF), que atua no caso, manifestou-se pela manutenção da suspensão do processo até a conclusão do procedimento demarcatório ou o julgamento definitivo pelo STF, apoiando a legitimidade da ocupação e refutando as acusações de crimes ambientais.

Conflito de visões: ocupação tradicional vs. posse privada

A empresa autora da ação afirma que a ocupação resultou em desmatamento, queimadas e invasão de propriedade privada, e atribui responsabilidade direta ao cacique Alexandre Acosta. Já os indígenas e entidades de apoio, como o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), sustentam que a área ocupada é um território ancestral e que as práticas denunciadas fazem parte da agricultura de subsistência, garantida pelo Código Florestal Brasileiro (Lei 12.651/2012) para povos tradicionais.

Relatórios antropológicos preliminares da UFRGS e manifestações técnicas da própria FUNAI reforçam a presença tradicional dos Guarani na região, apontando fundamentos históricos e culturais para a ocupação, que remonta há séculos.

Criminalização contestada

O juiz também rejeitou tentativas de criminalização da comunidade indígena, destacando que os usos tradicionais do fogo e outras práticas devem ser compreendidos dentro da cosmovisão Guarani, pautada na harmonia com a natureza. A decisão citou, inclusive, estudos que demonstram o uso controlado do fogo como técnica agrícola indígena sustentável.

Com a decisão, o processo segue suspenso até o trânsito em julgado do Tema 1031 no STF. A FUNAI será formalmente incluída como ré na ação e deverá fornecer informações técnicas detalhadas. As famílias Guarani seguem no território, aguardando o avanço do processo de demarcação da Terra Indígena Karandaty.

A decisão é mais um capítulo no embate entre interesses fundiários privados e os direitos territoriais dos povos indígenas, em um contexto jurídico ainda indefinido e profundamente sensível. O que está em jogo, para muitos, é mais do que posse ou propriedade — é o reconhecimento de um modo de vida e de uma história ancestral.


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