RAFAEL MARTINELLI

‘Lei Cláudio Ávila’ reserva vagas em creches para mais pobres em Gravataí; A aprovação de Zaffa, o espírito do tempo, o pai do Camaro e a doméstica do Rincão

A Câmara de Gravataí aprovou o Programa Creche para Todos. O Projeto de Lei 110/2023, de autoria do vereador de oposição Cláudio Ávila (União Brasil), cria uma reserva de 20% para crianças mais pobres, de zero a três anos, nas novas vagas criadas em educação infantil, seja com matrícula nas municipais ou por meio de compra de vagas privadas, além de autorizar o pagamento de uma bolsa para famílias que não conseguirem creche.

– Hoje há uma universalização na lei, não na prática. Quem tem mais condições acessa mais fácil as vagas, ou consegue judicializar. Os mais pobres ficam no fim da fila – argumenta o parlamentar, que já recebeu do prefeito Luiz Zaffalon elogios ao projeto e a garantia de que vai sancionar como lei e aplicar nas meta de vagas que incluem a conclusão até 2024 das obras de cinco Emeis que estão em construção.

Clique aqui para ler o projeto (e a justificativa) que foi aprovado com 17 votos favoráveis, entre governo e oposição.

Fui o primeiro a me associar à aventura do projeto, ainda em abril, em Projeto que reserva vagas de creches para pobres de Gravataí permite o necessário debate sobre o pai do Camaro e a doméstica do Rincão; O ‘espírito do tempo’.

Na conclusão do artigo, instiguei: “Vamos ao debate?”.

Antes escrevi:

“(…)

Apoio o projeto. É inconstitucional? Desconfio. Mas a justificativa do vereador – que é um brilhante advogado – permite um debate há muito adiado: aquele sobre o absurdo de um pai de Camaro largar a criança na creche municipal, enquanto a doméstica do Rincão da Madalena paga a menina vizinha para cuidar da criança quando vai trabalhar.

(…)”

Reputo uma boa aventura jurídica para embarcar. Se resta inconstitucional, pela Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) prever – assim como SUS – a “universalização” das vagas, ou seja, acesso pobres, ricos ou remediados, aguardemos para ver se alguém terá coragem para ingressar com uma ação de inconstitucionalidade; assim como observemos as decisões judiciais relativas a pedidos de vagas por quem tem condições financeiras de pagar creche privada.

Hoje há 4.950 crianças na fila das creches, além de 651 liminares judiciais determinando à Prefeitura matricula imediata.

Com a nova lei, uma comissão da Prefeitura vai avaliar as condições sócioeconômicas que, em resumo, contemplam famílias que se incluem nos critérios para receber o Bolsa Família, por exemplo.

O ‘advogado do diabo’ já encarnei ao questionar o vereador, que me convenceu das possibilidades de vencer o debate judicial, principalmente pelo judiciário brasileiro, e o STF principalmente, decidirem cada vez mais conforme o direito britânico, o mihi factum, dabo tibi ius, ou “dai-me os fatos, dou-te a lei”.

Significa julgar conforme o Zeitgeist, o ‘espírito do tempo’.

Já tinha antecipado a polêmica no artigo de abril, que tratava de uma primeira versão do projeto de Ávila, agora atualizada e aprovada pelo legislativo:

“(…)

Nove fora disputas políticas, vamos agora ao principal: a reserva de vagas para os pobres.

Associo-me à conclusão da justificativa de Ávila: “Em caso de entendimento jurídico diverso, que seja aprovada e sancionada a Lei, possibilitando a sociedade gravataiense buscar, através de eventual embate judicial, até a última instância, o direito de proteção e prioridade aos mais pobres”.

Alguém terá coragem para contestar judicialmente? É um caso análogo à aprovação do projeto que gradualmente proíbe carroças em Gravataí, que poderia ter questionamentos relativos à origem parlamentar, mas não foi contestado por representar uma evolução civilizatória.

Será um teste com potencial além fronteiras submeter a letra fria da lei nacional com o Zeitgeist, o ‘espírito do tempo’, que nos assombra com uma injustiça: no caso aldeano, a desigualdade entre o pai do Camaro e a doméstica do Rincão.

Pode o projeto de Gravataí também criar uma jurisprudência para a mãe que leva a criança de jegue para a creche em Belágua.

Fato é que hoje os municípios tem obrigação com crianças pobres, remediadas ou ricas, devido ao “acesso universal” previsto em 2016 na praticamente infactível Emenda Constitucional 59, que obriga pais a matricular e prefeituras a oferecer as vagas gratuitamente na educação básica, ou seja, dos quatro aos 17 anos.

Para as crianças mais novas, o prazo estabelecido pelo Plano Nacional de Educação é que metade delas tenham vagas disponíveis nas escolas infantis até 2024. O que mais do que dobra a fila.

É um bom projeto para um necessário debate. A Câmara de Vereadores poderia aprovar, o prefeito Luiz Zaffalon tornar lei e a gente aguardar o pai do Camaro acionar a justiça, para permitir o debate sobre uma universalização que hoje trata miseráveis e ricos como iguais, em um dos países mais desiguais do mundo.

Nem falei com ele sobre, mas o PL não me parece lacração do ex-menino da Abembra. Ou Ávila não proporia apenas 20%, mas todas as vagas para os pobres.

Vamos ao debate?

(…)”

Ao fim, ex-menino da Abemgra, que com um histórico familiar desestruturado cresceu dos 5 aos 13 anos bastante dependente da – e protegido pela – creche pública Guilherme Almeida (clique aqui para assistir o depoimento do político), se formou advogado e se tornou vereador, conseguiu uma complicada construção política e, ao aprovar seu projeto, devolve à sociedade muito do que recebeu; se a ‘Lei Cláudio Ávila’ vingar.

Incomoda-me apenas uma coisa: governos usarem a aventura jurídica para diminuir investimentos nas creches públicas para ‘privatizar’ o ensino infantil, comprando vagas nas escolas privadas.

Aguardemos.

Inegável é que hoje temos uma universalização que não diferencia miseráveis e ricos em um dos países mais desiguais do mundo.

Não há diferença na lei entre um pai que deixa o filho na escola pública infantil de carroça ou de Camaro.

Exagero? Eu já vi filmagem do carrão entre as latitudes 29º 56’ e 57’.

:

NOTA

Após a publicação do artigo, Ávila enviou nota. Siga na íntegra.

“(…)

A Legislação em voga, representa uma conquista social relevante. Não é algo personalista, pois foi construída após intensos debates e em várias mãos. 

Denominar a Lei com o meu nome é uma afronta ao Legislativo e aos futuros beneficiados pela legislação. A Lei estabelece um lindo e virtuoso programa denominado CRECHE PARA TODOS, inclusive, poderá ter o nome mudado pelo executivo na sua implementação. 

Colocar o meu nome, vejo como uma tentativa reducionista. Tão reducionista quanto os “constitucionalistas” que declaram legalidades e ilegalidades verbais. Sem ler o projeto, sem ler a CF/88 e o pior: ignoram o problema em si a ser combatido.

A lei é um verdadeiro símbolo do parlamento em resposta ao clamor popular e a necessidade social. Foi o legislativo em harmonia com o executivo que buscaram uma grande solução, para um problema histórico da cidade. Ambos os poderes foram gigantes e todos deixamos a política de lado, pelo bem das nossas crianças. 

Espero a mesma grandeza dos demais para evitarmos qualquer óbice política na implementação. Que venha o MAIS CRECHES (ou como o governo denominar).

Saudações.

(…)”

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