Valéria tinha seu pote de comida e seu pote de água, que ficavam no chão da cozinha. Leonel também tinha seu pote de comida e seu pote de água, que ficavam também no chão da cozinha. A Protetora também tinha seu pote de comida e seu pote de água, mas eles não ficavam no chão. Em vez disso, ela os levava até a mesa da sala, e comia segurando objetos grandes e finos nas mãos; e o pote d’água era alto, e ela precisava levá-lo até a boca para beber. Isso tudo parecia mais difícil do que o jeito que Leonel e Valéria comiam e bebiam, mas parecia dar certo, então eles não questionavam.
Um dia, ela saiu de casa logo após comer. Era cedo ainda, e o dia estava um pouco frio. O inverno parecia estar chegando.
— Sabe, eu fico pensando — Valéria disse, sentada no encosto do sofá.
Leonel achava engraçado: parecia que Valéria ficava quase todo o seu tempo apenas pensando, de tal forma que ela devia pensar dormindo; ou dormir pensando, até.
— Pensando no quê? — ele disse.
— Quem é que protege a Protetora?
Ele inclinou a cabeça.
— Como assim?
— Ora, a Protetora cuida de nós — Valéria prosseguiu —, nos mantém aqui dentro, nos dá comida e nos dá água. Logo, alguém deve fazer isso por ela também.
— E como você sabe?
— De que outro jeito ela traria todas essas coisas pra casa? Alguém deve fazer isso por ela.
— Mas e quem poderia ser?
— Ah, mas como é que eu vou saber? — ela disse, balançando a cauda.
— Eu não entendo como os humanos funcionam.
— Mas você é que fica pensando nessas coisas todas — Leonel respondeu, erguendo o focinho. — Eu achei que você tinha alguma ideia.
— Eu também não tenho resposta pra tudo, ora. Vai dizer que você tem alguma ideia de como ela consegue se manter?
— Eu sempre achei que ela deve sair pra rua e caçar, como os cachorros fazem — ele disse, caminhando pela sala.
— Caçar? — Valéria retrucou.
— Não me parece que a Protetora seja capaz de caçar alguma coisa.
— E por quê?
— Porque ela não é muito forte, nem muito ágil, não tem presas, não tem garras — ela disse, admirando suas próprias patas, tão delicadas e poderosas.
— Ela não tem jeito de caçadora.
— Talvez ela seja parte de um grande bando, com um líder bem forte, e juntos eles consigam o que precisam — ele disse, com certa propriedade.
— Bando?
— Claro! — ele disse, sacudindo a cauda.
— Quase todos os cães vivem em bando, e têm um Líder, que é como um Protetor. E a Protetora é a minha Líder também.
Valéria encarou-o por um instante.
— Mas nós dois não formamos um bando.
Leonel deu-lhe um olhar enviesado.
— Eu, hein? Nem brinca com isso! Nós nunca seremos um bando. Nós… nós… coexistimos, é só isso.
— Pra mim, tá ótimo. Mas isso de a Protetora sair pra caçar em bando — ela retomou —, eu não consigo imaginar isso. Você sai com ela na rua, você deve saber melhor.
— Mas ela me leva pra passear, não pra caçar — ele disse. — Mas eu já vi outras pessoas andando em bandos na rua. Eles só podiam estar caçando. Já outros andavam sozinhos… que nem gatos, eu acho.
— Será que tem humanos que são que nem gatos, e outros que são que nem cães? — Valéria ponderou, olhando para o chão. — Isso seria estranho.
Leonel deu uma fungada.
— Mas humanos são estranhos, não são? — Eu só conheço a Protetora — ela disse, piscando lentamente. — Por isso pensei que eles fossem como gatos.
— Você vive pensando, não é, não? — Leonel disse. — Parece que é só isso que você faz.
— E qual é o problema? — É que não adianta nada ficar pensando em coisas que a gente nunca vai saber. Eu prefiro aproveitar as coisas que eu sinto e que eu sei.
— Eu já entendi que você tem um jeito diferente do meu — ela disse, com um tom quase compreensivo.
— Mas você nunca fica pensando em nada, não?
Leonel sentiu um peso repentino na barriga, e olhou para sua caixinha de sujeira.
— Eu penso às vezes, sim.
Ela olhou para ele de relance.
— Então fala alguma coisa que você pensa.
— Então, eu penso… Como é que a Protetora faz cocô?
Valéria deitou-se no encosto do sofá, com os olhos semicerrados. — Deixa pra lá.
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Leonel observava, em silêncio, enquanto os olhos de Valéria iam de um lado para o outro, olhando para o alto. Ela quase nem se mexia. Vez ou outra ele conseguia enxergar a mosca, que ela tanto perseguia com os olhos. Valéria às vezes esticava o pescoço, às vezes recuava, tentando achar a melhor posição para observá-la. Quando a mosca chegava perto, ela até erguia a pata para alcançá-la, mas não ia adiante. E a mosca continuava voando, zunindo pela sala. Valéria não se cansava de observar a mosca, e Leonel não se cansava de observar Valéria.
De repente, a mosca voou perto de Valéria. Em um piscar de olhos, ela ergueu a pata e deu-lhe um tapa. A mosca caiu, em trajetória balística, e estatelou-se no chão.
Valéria, sem demonstrar muito interesse, começou a lamber a pata.
— Dá pra explicar o que acabou de acontecer? — Leonel disse.
Valéria olhou para ele, sem esboçar reação.
— Eu sei lá. Eu só sei que eu não brinco mais de pega-pega. Quando eu finalmente pego ela, ela desiste de brincar e vai dormir!