Caiu nas minhas mãos, tempos atrás, um livro amarelecido pelo tempo, de um autor do qual nunca havia ouvido falar, mas cujo tema me interessou.
Logo na página de rosto, fui fisgada por algumas palavras escritas em vermelho, com caneta tinteiro e em letra cursiva, por uma leitora anterior (aquela letra certamente era feminina).
Onde estava escrito, “tradução de….”, abaixo do título do livro e do nome do autor, ela havia acrescentado: “muito ruinzinha, por sinal.”
Com um sorriso no rosto, passei aos agradecimentos; dali, ao prefácio e, logo, ao primeiro capítulo. Naquela altura, já estava concordando com a leitora da caneta vermelha: o tradutor era péssimo, assim como o revisor, e o autor também não devia ser nenhuma maravilha.
Já ia fechar o livro, mas decidi verificar o que mais ela havia escrito, e tudo era tão interessante ou engraçado que cheguei à última página com a sensação de que o autor havia desembarcado do livro e passado o comando àquela leitora, por admitir que era mais competente do que ele.
Era perceptível que se tratava de uma pessoa culta e bastante meticulosa (uma tradutora talvez), e imagino que tinha, ao lado, o texto do livro no idioma original.
Com caligrafia impecável, havia corrigido trechos da tradução, apontado sua discordância com relação a vários argumentos apresentados pelo autor e, o que me pareceu muito oportuno, substituído algumas palavras complicadas por outras de uso comum. Afinal, um texto é escrito para ser entendido, não é?
Ali estava a prova de que cada leitor, anotando ou não suas impressões, atribui ao texto lido um sentido próprio, de acordo com suas vivências e suas leituras anteriores.
Livros rabiscados 2
Quando eu tinha uns 14 ou 15 anos, descobri o escritor-aviador Antoine de Saint-Exupéry, cujo livro mais famoso, mas, nem de longe o melhor, é O Pequeno Príncipe.
Assim, devorei Terra dos Homens (cujo capítulo final mexeu definitivamente com minha cabeça), Voo Noturno, Piloto de Guerra e Cidadela.
Nesse último, publicado postumamente, sem que o autor o tivesse concluído e revisado, eu havia sublinhado, com uma esferográfica (nessa época ainda tinha paciência para usar réguas), as reflexões que me pareceram mais interessantes. E, naturalmente, não me atrevi a fazer qualquer outra interferência no texto de Saint-Exupéry, pois me parecia perfeito.
Certo dia, meu pai — que só havia estudado até o terceiro ano do Curso Primário, mas gostava de ler, escolheu, dentre os livros da casa, justo aquele, e o levou para seu quarto.
No dia seguinte, ele me chamou para uma conversa: “Filhota, quem foi que riscou este livro?”. E eu, pensando que ia levar uma bronca, admiti, meio encabulada, que tinha sido eu quem havia cometido aquele sacrilégio.
Mas não era essa sua preocupação. Ao saber que eu tinha lido e gostado tanto do livro, a ponto de destacar os trechos que tinha me parecido mais interessantes, ficou todo bobo:
– Filhota, acabo de me dar conta de que já não és uma criança!
A versão do afogado
Este é o título, que me parece genial, de uma crônica do Luis Fernando Verissimo que ainda não li.
Fico imaginando o afogado, resgatado com vida, tentando explicar o que aconteceu. Ele, ali, narrando o momento em que mergulhou, para recuperar a sunga levada por uma onda, e, a sua volta, um bando de testemunhas e curiosos, que não conseguem disfarçar seu desapontamento diante de história tão prosaica.
Então, ele não havia tentado o suicídio, como prenunciava sua expressão amargurada ao chegar à praia? E tampouco estava caindo de bêbado, como indicavam seus passos trôpegos em direção ao mar?
Puxa, que afogado mais sem graça…