Recomendamos o artigo do jornalista Luiz Fernando Aquino, publicado pelo Jornal de Gravataí
A tortura. Dava-se assim. Ano após ano. Sempre no início. A face mais cruel da tortura talvez seja o medo, o pavor. Aquela incerteza solta no ar à espera de um momento. Compreensível que o torturado suplique para que o flagelo se inicie logo. Todo início de ano. Primeiros dias de aula. Eu sentava nas fileiras do fundo. Não as últimas, onde as almas já parecem perdidas. Era um pouco antes, entre o meio e o fundão. Uma bacia das almas, talvez. Era dali, com as mãos suadas, apreensivo, que eu seguia a ordem alfabética dos cadernos de chamada. Cobertos por plásticos transparentes, com um formato mais vertical. Uma cor para cada turma. Meu coração disparava.
Primeiros dias de aula. Turmas novas, novos colegas. O medo era tamanho que, quase sempre, à medida que os nomes iam sendo chamados, eu até esquecia que os luíses com “s” vinham antes dos luízes com “z”, o meu caso. Eu quero crer que, naqueles tempos, década de 70, os professores sequer imaginavam a dor que aquilo me causava – por certo que eu não era o único. Mas a dor é uma veste muito pessoal. Tem as medidas das nossas forças. E essas me faltavam. Não foram poucas as vezes em que pensei sair em disparada. Seria pior. Na volta, é bem provável que eu fosse submetido à execração pública, que era assim que eu percebia esses primeiros dias de aula.
A tortura, então. Dava-se assim. Anas, marias, brunos e nomes com “f” eram o meu refrigério. Naquela via-sacra, com a boca seca, a angústia ia aos poucos me sufocando. Letra “h”, um Hugo, um Hélio e já era. Letra “i”, ninguém. Ô desgraça! Inácio, que belo nome. Mas não. O “j” era uma ilha em que eu recuperava o fôlego, mas o suor das mãos, que até hoje ficam geladas nessas ocasiões, me preparava para o pior. Janetes, jânios, josés (benditos josés, que tantos eram), juce e… não mais. Kátia, e lá se foi o “k”. Escrevendo agora, de novo, a mesma sensação. O coração dispara. As mãos suadas.
A tortura. Dava-se assim. Primeiros dias de aula. Os professores – de novo, suponho que eles não tinham noção disso, só repetiam um ritual a que estavam acostumados. Medos nascem, não sabemos de onde. O meu, acredito, foi ali. Primeiros dias de aula. Também pode ter sido minha primeira experiência de fantasia. Era preciso pensar rápido. Fim dos luíses com “s”. Luiz Alberto, Luiz Carlos… minha respiração agora é curta, está no peito. Não desce ao estômago. Aperto os dedos, mãos suadas. Luiz Eduardo. É agora. Últimas fileiras. Sala cheia. Primeiros dias de aula. Luiz Fernando Aquino. Sim, era eu. A boca seca à espera da pergunta, que cortava o ar feito feito lâmina e me atingia branco de pavor. Dava-se assim. Custei a entender que os professores não eram pessoas más. Rosnei por anos dizendo que construí minha primeira ideia de autoridade, no pior sentido da palavra – eram os anos 70, lembrem disso –, na figura dos professores.
A tortura. Dava-se assim. Luiz Fernando Aquino, nome do pai e da mãe. Meu pai não existia. Se existiu, nunca apareceu. Nem para dar nome nem para saber se eu havia sobrevivido. Em meio àquele turbilhão de pensamentos, por Deus, não lembro o que eu respondia. Devo ter inventado histórias. Mas da segunda parte da pergunta, essa sim é bem viva em minha memória. E a mãe? Essa existe. É muito presente e eu tenho o maior orgulho dela. Não dizia assim, mas deveria ter feito. Chama-se Clecy Fernandes Aquino e é cabeleireira. E deveria ter dito ainda: é muito bonita, bem mais do que a senhora, professora.
Mãe (em memória), feliz Dia dos Pais!