Associo-me ao artigo Mais do que rico vs pobre, é rico contra classe média. E 1,49% é o novo 666, do jornalista Leonardo Sakamoto, publicado pelo UOL. Sigamos no texto:
É tocante e comovente ver a quantidade de gente criada no leite de pera que vem a público defender a desigualdade estrutural. Reclamam do nascimento de uma suposta polarização social quando se critica um Congresso que legisla para os ricos, esquecendo que a situação começou quando indígenas foram pela primeira vez escravizados para carregar pau-brasil para os portugueses há 500 anos. E, desde então, a desigualdade tem sido a base institucional e alma do país.
O governo Lula conseguiu ter sucesso com vídeos por IA bombando uma informação óbvia, mas nem por isso compreendida pela maioria: o Congresso é mais suscetível a legislar pelos mais ricos. A campanha ficou conhecida pela ideia de “ricos versus pobres”, mas na verdade, a questão são “ricos versus a classe média”.
Se bem absorvida pela população, essa ideia tem mais chance de fazer estragos do que a primeira. Muita gente não se vê como pobre (apesar de ser) e outros tantos brasileiros creem (de forma equivocada) que os mais pobres já contam com benefícios demais. A classe média, principalmente seu estamento mais baixo, que inclui o trabalhador por carteira, vendedores autônomos e o pessoal explorado por aplicativos, ressente-se de falta de políticas que os beneficiem. E criticam o governo federal por causa disso, o que se vê nas pesquisas.
Um número obtido por Guilherme Pimenta e Lu Aiko Otta, do jornal Valor Econômico, via Lei de Acesso à Informação, é pornográfico. Contribuintes com rendimento médio entre R$ 750 milhões e R$ 1 bilhão ao ano pagam apenas 1,49% de Imposto de Renda em média.
Quem recebe entre R$ 150 milhões e R$ 350 milhões é mordido com uma alíquota média anual de 1,87%; entre R$ 350 milhões e R$ 500 milhões, 3,88%; entre R$ 500 milhões e R$ 750 milhões, 2,77%; acima de R$ 1 bilhão, 5,54%. Lembrando que essas alíquotas não são as cobradas pela Receita Federal, mas é quanto, no final das contas, com isenções de cobranças sobre dividendos e salamalaques fiscais, esses grupos acabam pagando de imposto.
O nosso sistema cobra, proporcionalmente, mais de uma professora que ganha três salários mínimos (quem recebe R$ 4.554 atinge a alíquota de 22,5%) do que um empresário que recebe mil vezes isso. Projeto apresentado pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad visa a cobrar pelo menos 10% de Imposto de Renda de quem ganha mais de R$ 600 mil por ano. A ideia até considera o que já é pago de imposto pela empresa no cálculo do que será cobrado do acionista.
Isso lembra que super-rico não é você, que faz parte da massa de 212,4 milhões que aprenderam a se virar, mas as 141,4 mil almas que ganham mais de R$ 50 mil mensais. Mesmo assim, muita gente do andar de baixo age como guerreiro do capital alheio e goza com esses números pornográficos de alíquotas baixas para os super-ricos.
Ver o pessoal que se beneficia da isenção de dividendos recebidos de empresas elogiando o atual modelo regressivo faz parte do jogo, é a defesa da própria classe social. O que me deixa intrigado é quem ganha tanto quanto a professora sair em defesa raivosa desse sistema, talvez na esperança que um dia seja ele o beneficiário.
Com a segunda etapa da Reforma Tributária, que trata da reforma do Imposto de Renda, parada, o governo tentou pautar o tema com a proposta de cobrar do andar de cima para isentar quem ganha até R$ 5 mil por mês, ou seja, a classe média – os mais pobres já não pagam esse imposto.
A isenção vai passar no Congresso, porque deputados e senadores não são suicidas políticos e ano que vem tem eleição. A questão é se conta para os ricos também será aprovada dessa forma.
Vale aqui pena parafrasear o Evangelho de Mateus para lembrar que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um parlamentar super-rico aprovar a taxação de sua classe social. E o que mais temos entre deputados e senadores são pessoas que são desse grupo ou que o representam.
Algo que ajuda na tomada de decisão deles é que, segundo pesquisa Datafolha, 76% apoiam a proposta de taxação do andar de cima.
Combater a desigualdade não resolve de vez os problemas do país, mas é uma ação fundamental para indicar o tipo de sociedade que gostaríamos de construir: um país que acredita na redução das regras para ricos e classe média e pobres como pré-condição para o desenvolvimento coletivo ou um que tem um orgasmo toda vez que um bilionário brasileiro sobe um degrau no ranking de bilionários globais da Forbes.
A desigualdade dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições. O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
Enquanto isso, somos um navio remado por trabalhadores que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote enquanto poupa meia dúzia de passageiros ricos. Ironicamente, uma parte dos remadores não questiona a exploração, mas rema sonhando feliz ao ver a imagem dos mais ricos glamourizando no Instagram.