3° Neurônio | crônica

Me belisque

Como psicanalista, o dr. Abreu já tratara de muita gente estranha. Um paciente tentara esgoelá-lo e saíra do consultório diretamente para o manicômio. Outro contara em detalhes toda a sua vida, que o dr. Abreu não demorara em identificar como sendo a vida do Thomas Edison. Por isto o dr. Abreu não se surpreendeu quando a primeira coisa que aquela nova paciente disse foi:

– Eu posso não estar aqui.

O dr. Abreu pediu, sorrindo, para ela explicar. Ela disse:

– Eu nunca sei se estou sonhando ou não estou. É por isto que eu estou aqui.

– Então você está aqui – disse o dr. Abreu.

– Se eu não estiver sonhando. Eu posso estar na minha cama, dormindo, e sonhando que estou aqui.

– O que não a impede de falar, e me contar os seus problemas.

– Meu problema é um só. Não consigo distinguir sonho de realidade.

– Muito bem. Vamos supor que isto seja um sonho. Que eu também não esteja aqui, e sim no seu sonho. Podemos fazer a sessão assim mesmo. Com a vantagem que você não precisará pagá-la, já que é tudo um sonho.

– O senhor acha?

– Acho. Deite-se, por favor.

– Aqui, no divã?

– Por favor.

O dr. Abreu pediu para ela contar desde quando confundia sonho com realidade. Ela respondeu que desde criança. Ela se lembrava de algum trauma de infância que pudesse ter desencadeado a confusão? Não, não. Na verdade sua infância tinha sido um sonho. Ou então ela sonhara que tinha sido um sonho. Era difícil dizer.

– Você nunca fez um teste para saber se era sonho ou não?

– Como, teste?

– Por exemplo, tentar fazer uma coisa completamente impossível. Voar. Sair voando pela janela. Se você conseguir voar, é sonho. Se não, não é.

– Me belisque.

– Como?

– É um teste. Me belisque. Se eu sentir, não é sonho.

– Desculpe, mas eu não posso beliscá-la. Não posso tocá-la. Seria antiético.

– Só se não fosse sonho. Se fosse, não teria importância. Sonho não tem ética, não tem moral, não tem regras, não tem lógica. Num sonho nada é impossível, nada é proibido. Me belisque.

– Não posso.

– Você não quer me ajudar? Seria um beliscão terapêutico. Para acabar com as minhas dúvidas.

– Desculpe.

– Você prefere que eu tente sair voando pela janela. É isso?

– Não, eu….

– A verdade é que você não tem certeza se isto é um sonho ou não. É ou não é?

– Claro que não. Eu tenho certeza que isto é a realidade.

– Então me belisque, para provar.

– Não.

– Me belisque!

– Não posso.

– Me belisque!

Naquele momento, o dr. Abreu pensou no seu velho sonho de largar a profissão se retirar para um sítio, longe da voz humana.

 

Luis Fernando Verissimo vive em Porto Alegre, é jornalista, escritor, humorista, cartunista e quadrinista. Para conhecer sua obra e trajetória, acesse a Wikipédia.

 

Participe de nossos canais e assine nossa NewsLetter

Facebook
WhatsApp
Twitter
LinkedIn
Pinterest

Conteúdo relacionado

A existência como arma

O suicídio não é o fim, mas o princípio. Compartilhamos o artigo de José Sócrates, primeiro-ministro de Portugal, de 2005 até 2011, publicado pelo ICL Notícias Dizem no teatro que

Leia mais »

Receba nossa News

Publicidade