Recomendamos o artigo do jornalista Reinaldo Azevedo, publicado em sua coluna no UOL
Em decisão impecável, cristalina, o ministro Alexandre de Moraes fixou a competência do Supremo Tribunal Federal, e não do Superior Tribunal Militar, para julgar os militares, das Forças Armadas ou das Polícias Militares, que participaram dos atos golpistas de 8 de janeiro. O ministro respondeu a requerimento da Polícia Federal solicitando autorização para “para apuração de autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos” por integrantes dessas corporações.
Em sua petição, a PF pede que “seja reconhecida a atribuição investigativa da atuação da Polícia Federal e jurisdicional do Supremo Tribunal Federal para processamento do presente caso em especial em relação aos servidores militares das forças armadas e polícia militar”.
Já defendi aqui e em toda parte que a competência é do Supremo porque, como resta evidente, não se está a investigar um crime militar. A natureza dos atos cometidos no dia 8 de janeiro não se altera caso a pessoa use um uniforme. E foi o que explicitou Alexandre nos seguintes termos, citando jurisprudência do próprio tribunal. Prestem atenção!
“O Código Penal Militar não tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das Forças Armadas competência ad institutionem, conforme pacificamente decidido por esta SUPREMA CORTE ao definir que a Justiça Militar não julga “CRIMES DE MILITARES”, mas sim “CRIMES MILITARES”.
E o ministro cita a longa jurisprudência a respeito. Nem todo crime cometido por militares diz respeito às suas atribuições específicas — e, pois, crimes militares não são.
De tal sorte é a natureza do ato, não quem o pratica, a definir se um delito é militar ou não que civis podem ser julgados por crimes militares.
Moraes cita o então ministro Celso de Mello, em despacho de 2011, no âmbito do Habeas Corpus 106.671:
“O foro especial da Justiça Militar da União não existe para os crimes dos militares, mas, sim, para os delitos militares, tout court. E o crime militar, comissível por agente militar ou, até mesmo, por civil, só existe quando o autor procede e atua nas circunstâncias taxativamente referidas pelo art. 9º do Código Penal Militar, que prevê a possibilidade jurídica de configuração de delito castrense eventualmente praticado por civil, mesmo em tempo de paz”.
Lembra ainda Moraes que também o artigo 10º do Código Penal Militar define os crimes militares — nesse caso, os cometidos em tempo de guerra. Muito bem. Algumas das agressões à ordem legal praticadas no dia 8 de janeiro, pouco importa se os agentes eram civis ou militares, não estão nem tipificadas no CPM.
Escreve o ministro:
“Inexiste, portanto, competência da Justiça Militar da União para processar e julgar militares das Forças Armadas ou dos Estados pela prática dos crimes ocorridos em 8/1/2023, notadamente os crimes previstos nos arts. 2º, 3º, 5º e 6º (atos terroristas, inclusive preparatórios) da Lei 13.260/16, e nos arts. 147 (ameaça), 147-A, § 1º, III, (perseguição), 163 (dano), art. 286 (incitação ao crime), art. 250, § 1 º, inciso I, alínea ”b” (incêndio majorado), 288, parágrafo único (associação criminosa armada), 359-L (abolição violenta do Estado Democrático de Direito), 359-M (golpe de Estado), todos do Código Penal, cujos inquéritos tramitam nesse SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL a pedido da Procuradoria Geral da República”.
Assim sendo, decidiu o magistrado:
“Diante do exposto, FIXO A COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA PROCESSAR E JULGAR OS CRIMES OCORRIDOS EM 8/1/2023, INDEPENDENTEMENTE DOS INVESTIGADOS SEREM CIVIS OU MILITARES E DEFIRO A REPRESENTAÇÃO DA POLÍCIA FEDERAL E AUTORIZO A INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO para apuração de autoria e materialidade de eventuais crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas e Polícias Militares relacionados aos atentados contra a Democracia que culminaram com os atos criminosos e terroristas do dia 8 de janeiro de 2023”.
O Código gigantesco e os crimes na paz e na guerra
O Código Penal Militar é um cartapácio de 410 artigos. As tipificações, com as respectivas penas, começam mesmo no Artigo 136. Os 135 anteriores são uma espécie de guia de aplicação dos demais. Muitos dos tipos penais que ali estão são os mesmos da legislação penal comum. Ademais, a Justiça Militar pode punir por infrações cometidas segundo qualquer dos dois códigos, desde que, reitere-se, se cumpram as exigências dos Artigos 9º e 10º do CPM.
O ARTIGO 9º: CRIMES EM TEMPOS DE PAZ
E quando é que um crime é considerado militar em tempos de paz? Vamos ver o que dispõe o Artigo 9º. Têm de ser cometidos:
– por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
– por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
– por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
– por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
– por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
Os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
– contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
– em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
– contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
– ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
Deu para entender? Crimes militares são aqueles cometidos, de fato, no exercício da função ou mesmo por civis em áreas sob administração militar. Atentem para o Parágrafo 1º:
§ 1º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
Como se vê, um crime contra a vida, ainda que o autor seja um militar, vai para o Tribunal do Júri. É sempre assim? Há a ressalva no Parágrafo 2º:
§ 2º Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:
a) Código Brasileiro de Aeronáutica;
b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;
c) Código de Processo Penal Militar; e
d) Código Eleitoral.
EM TEMPOS DE GUERRA
E há os crimes militares que podem ser cometidos em tempos de guerra:
Art. 10º: Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempo de guerra:
I – os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra;
II – os crimes militares previstos para o tempo de paz;
III – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente:
a) em território nacional, ou estrangeiro, militarmente ocupado;
b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação, a eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurança externa do País ou podem expô-la a perigo;
IV – os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupado.
Concluindo
A hipótese, pois, que chegou a ser aventada por alguns de que a Justiça Militar teria jurisdição para processar membros das Forças Armadas ou das Polícias Militares envolvidos com os atos golpistas não tem o menor fundamento.
A decisão de Moraes decorre da simples leitura da lei.