Nei Duclós, criador polivalente (com ou sem instrumento de escrita à mão), jorra poesia enquanto vive, conversa ou trabalha. Na prática, lá vão umas cinco décadas alinhando versos, sublinhando verdades. Uma pessoa tão produtiva quanto afetiva, que não deixa o papel ou a tela em branco, nem o coração desatento ao tempo. Clap, clap, clap!
AVE MARINHA
Ave marinha, cheia de espaço
bendito é teu voo entre os mastros
anuncias a terra que a gávea adivinha
recebes a barca expulsa da treva
Não é mais segredo, Deus é bonito
apoio de amor nas redes de arrasto
praia infinita posta em sossego
asas que o tempo não contamina
Calor de fogueira, farol de encomenda
tudo o que vive vira poema
sombras de nuvens seduzem o peixe
ave marinha, breve roteiro
Já estou partindo, vim muito cedo
busco o festejo dos navegantes
amantes crismados no sal do desejo
por tua imagem batida de vento
LIMITE DA FANTASIA
Eu me sinto tão bruto
e você feita de vidro
quem mandou ficar comigo
fada domando urso
Limite da fantasia
é quando quebras no escuro
e viras jarro partido
cacos cobrindo o muro
Relevas os meus ruídos
e o pelo roçando o piso
teu passo de bailarina
repõe o tosco no prumo
Sou o tango mais rasgado
és a valsa em purpurina
me colhes em teu vestido
me acertas em pleno alvo
É só um corpo recluso
amor é poço sem fundo
começa com porcelana
em forma de caramujo
CLAUSTRO
Se guardar segredo, funciona.
Se for contar, desmorona
O íntimo é íntegro, proporciona
a força que resiste ao tombo
Dentro há uma fonte perene
que deixa a invasão de fora
o coração inaugura o poente
a pele se mostra na aurora
Não adivinharão tua obra
a que é refém das comportas
o cuidado que tens é tua alma
única voz no claustro da barra
DESAFIO
Tens medo da minha dor
pelo poder que há
de abismo
Preferes a comunhão
de alguém
sem tanto convívio
que não traia o coração
na flor composta
de espinhos
Sou agora uma porção
de uma estranha
confraria
nas rodas da oração
nas refeições
do infinito
Um desafio de tourada
na capa rubra
do amigo
O sol que o iluminava
pousa no amor
que divido
SÍTIO
Eu não tinha os limites
que agora me cultivam
sou húmus de um sítio
caule redivivo
Já me conformo
em não ser altivo
De mim brota o futuro
roupa de domingo
O destino é mínimo
em relação ao sonho
o corpo economiza
para a paz de espírito
O som do tambor
amortece a queda
Meu olhar de nuvem
marcha batida
POR TODO LADO
por todo lado só vejo despesa
o transborde de sobras, papéis
sobre a mesa. o acúmulo
de adiamentos. o corpo torto
a roupa que deu vencimento
sem falar na Lua e suas cobranças
momentos que ficam como herança
e é preciso cobrir com esforços
de açúcar, beijos demorados
em paisagens de grude e realejo
SABOR DO TEMPO
A palavra fareja a memória
e desenterra seu osso
água rasa até o pescoço
roupa cerzida no sótão
Sabor que o tempo alimenta
arqueologia da fome
vida em camadas que some
pendurada nas lembranças
O som das falas sem rosto
assombram as despedidas
anjos tocam de ouvido
as sonatas da família
Sobrevive em teu caderno
riscos de parede nua
vislumbre de viagens frias
em janelas de armistício
É o silvo dos minutos
trilhados sobre o abismo
nada persiste em Saturno
deus do remorso bruto
ACORDO SEM MOTIVO
Acordo cedo sem motivo
café com leite longa vida
o pão caseiro amanhecido
o forno a lenha muito antigo
a rosa em véspera colhida
na mesa ainda sem capricho
Trago de volta a poesia
para quem acha graça nisso
inverno ensaia seu início
notícia velha sobre o clima
calor interno em conflito
sob as cobertas sinto frio
Balanço de uma estranha vida
tempo em que nada acontece
aguardo o sol no seu aprisco
a pincelar o céu de roxo
Sofro um intenso paradoxo
tarde demais quando amanhece
A FÉ
A fé é uma idiotia
quando a mente obriga
e uma rotina
se a emoção comanda
A fé é uma outra via
membrana no limite
de realidades sem vínculo
fronteira entre a origem
e o esquecimento
Acredite, diz a vida
ou nos reduzimos ao granito
dance o gesto mínimo
de uma agulha em queda
sobre o abismo
A fé é vã filosofia
se a gruta ocultar no deserto
a escritura. A revelação
concede o que religa a alma
à sua fonte íntima
A parábola ou o salmo
são palavras que dormem no Livro
Recite sem pedir ajuda
talvez nem leia, peça licença
para uma abertura
Ou salvamos a fé de seus equívocos
ou a guerra vencerá
em toda a linha.
Água de batismo, prece convicta
e a natural vontade
ao apagar na areia
Ouro de bateia, a fé é ofício
não serve para emoldurar igrejas
nem comprar o púlpito
faz parte da razão e sua rústica
comunhão de trigo
Porque raciocina, Deus vê
o obscuro apelo do monturo
Pula o muro a cabra em pastoreio
o corpo migra da oração
para a argila. É o abandono
que inventa a pedra sem conflito
Convívio de opostos
exatidão de cismas, a religião
é a sombra do sepulcro
O espírito visita a claridade
Há uma cidade à espera
da áspera profecia
ESCREVO
Escrevo romances esquecidos
poemas dispersos, contos ocultos
Escrevo memórias tristes
artigos aos pulos, biografias
da indústria, currículos infames
Escrevo ideias vadias
canções recolhidas no lixo
ensaios absurdos, textos
sem assinatura, literaturas
perdidas, lendas avulsas
Escrevo por puro artifício
vocação fora do assunto
compulsão doentia, servidão
de herança, situação aflita
repertório tardio, luzes pífias
Escrevo como Deus manda
quando está distraído e decide
permitir que o vício assuma
as dores da virtude. Escrevo
como quem persegue a epifania
OUTRO MAR
Venha ao mar, dizem, convictos
mas o mar eu imagino
O mar mesmo, decisivo
não é o mar do meu estilo
Prefiro o mar de menino
que eu deixei sem arrimo
O monstro mar infinito
não o mar que está na esquina
Já vi o mar, não repito
a emoção de descobri-lo
Não quero o mar de rotina
previsível na notícia
Quero o mar que está comigo
como parceiro de briga
O mar que não me abandona
como um verdadeiro amigo
O mar que o poema inventa
para lhe fazer justiça
TUTANO
Raspei o verso até o osso
ficou exposto o tutano
herança quando fui moço
galope de potro solto
Cortei a carne do acervo
promovi denso alvoroço
e recolhi o que ouço
no couro de tronco oco
Tambores de gritaria
rugidos de fera humana
ventos a mil por hora
ordens presas na garganta
Pedras que atiram longe
em alvos sem importância
estrela que vem do frio
e leva ao mar seu incêndio
Passei a limpo os gemidos
consegui sair a tempo
recitei trilhas de trevos
obedeci porque é cedo
Nei Duclós é poeta, escritor, jornalista. Nasceu em Uruguaiana, atuou em Porto Alegre e outras cidades, agora vive em Florianópolis. É autor de quase 20 livros, desde poesia e romance, a crônicas e literatura infantil.
Para se abastecer mais da poesia de Nei Duclós e acompanhar seus escritos sobre literatura, jornalismo, política, entre outros interesses, acesse seu blog Outubro (de onde extraímos esses 12 poemas), seu site Consciência Org ou seu Facebook. Para conhecer sua obra e trajetória, acesse a Wikipédia.