3° Neurônio | poesia

Nei Duclós, um poeta ilhado de palavras, cercado de delicadezas

 

Nei Duclós, criador polivalente (com ou sem instrumento de escrita à mão), jorra poesia enquanto vive, conversa ou trabalha. Na prática, lá vão umas cinco décadas alinhando versos, sublinhando verdades. Uma pessoa tão produtiva quanto afetiva, que não deixa o papel ou a tela em branco, nem o coração desatento ao tempo. Clap, clap, clap!

 

AVE MARINHA

Ave marinha, cheia de espaço

bendito é teu voo entre os mastros

anuncias a terra que a gávea adivinha

recebes a barca expulsa da treva

 

Não é mais segredo, Deus é bonito

apoio de amor nas redes de arrasto

praia infinita posta em sossego

asas que o tempo não contamina

 

Calor de fogueira, farol de encomenda

tudo o que vive vira poema

sombras de nuvens seduzem o peixe

ave marinha, breve roteiro

 

Já estou partindo, vim muito cedo

busco o festejo dos navegantes

amantes crismados no sal do desejo

por tua imagem batida de vento

 

 

LIMITE DA FANTASIA

Eu me sinto tão bruto

e você feita de vidro

quem mandou ficar comigo

fada domando urso

 

Limite da fantasia

é quando quebras no escuro

e viras jarro partido

cacos cobrindo o muro

 

Relevas os meus ruídos

e o pelo roçando o piso

teu passo de bailarina

repõe o tosco no prumo

 

Sou o tango mais rasgado

és a valsa em purpurina

me colhes em teu vestido

me acertas em pleno alvo

 

É só um corpo recluso

amor é poço sem fundo

 começa com porcelana

em forma de caramujo

 

 

CLAUSTRO

Se guardar segredo, funciona.

Se for contar, desmorona

O íntimo é íntegro, proporciona

a força que resiste ao tombo

 

Dentro há uma fonte perene

que deixa a invasão de fora

o coração inaugura o poente

a pele se mostra na aurora

 

Não adivinharão tua obra

a que é refém das comportas

o cuidado que tens é tua alma

única voz no claustro da barra

 

 

DESAFIO

Tens medo da minha dor

pelo poder que há

de abismo

 

Preferes a comunhão

de alguém

sem tanto convívio

 

que não traia o coração

na flor composta

de espinhos

 

Sou agora uma porção

de uma estranha

confraria

 

nas rodas da oração

nas refeições

do infinito

 

Um desafio de tourada

na capa rubra

do amigo

 

O sol que o iluminava

pousa no amor

que divido

 

 

SÍTIO

Eu não tinha os limites

que agora me cultivam

sou húmus de um sítio

caule redivivo

 

Já me conformo

em não ser altivo

De mim brota o futuro

roupa de domingo

 

O destino é mínimo

em relação ao sonho

o corpo economiza

para a paz de espírito

 

O som do tambor

amortece a queda

Meu olhar de nuvem

marcha batida

 

 

POR TODO LADO

por todo lado só vejo despesa

o transborde de sobras, papéis

sobre a mesa. o acúmulo

de adiamentos. o corpo torto

a roupa que deu vencimento

 

sem falar na Lua e suas cobranças

momentos que ficam como herança

e é preciso cobrir  com esforços

de açúcar, beijos demorados

em paisagens de grude e realejo

 

 

SABOR DO TEMPO

A palavra fareja a memória

e desenterra seu osso

água rasa até o pescoço

roupa cerzida no sótão

 

Sabor que o tempo alimenta

arqueologia da fome

vida em camadas que some

pendurada nas lembranças

 

O som das falas sem rosto

assombram as despedidas

anjos tocam de ouvido

as sonatas da família

 

Sobrevive em teu caderno

riscos de parede nua

vislumbre de viagens frias

em janelas de armistício

 

É o silvo dos minutos

trilhados sobre o abismo

nada persiste em Saturno

deus do remorso bruto

 

 

ACORDO SEM MOTIVO

Acordo cedo sem motivo

café com leite longa vida

o pão caseiro amanhecido

o forno a lenha muito antigo

a rosa em véspera colhida

na mesa ainda sem capricho

 

Trago de volta a poesia

para quem acha graça nisso

inverno ensaia seu início

notícia velha sobre o clima

calor interno em conflito

sob as cobertas sinto frio

 

Balanço de uma estranha vida

tempo em que nada acontece

aguardo o sol no seu aprisco

a pincelar o céu de roxo

Sofro um intenso paradoxo

tarde demais quando amanhece

 

 

A FÉ

A fé é uma idiotia

quando a mente obriga

e uma rotina

se a emoção comanda

 

A fé é uma outra via

membrana no limite

de realidades sem vínculo

fronteira entre a origem

e o esquecimento

 

Acredite, diz a vida

ou nos reduzimos ao granito

dance o gesto mínimo

de uma agulha em queda

sobre o abismo

 

A fé é vã filosofia

se a gruta ocultar no deserto

a escritura. A revelação

concede o que religa a alma

à sua fonte íntima

 

A parábola ou o salmo

são palavras que dormem no Livro

Recite sem pedir ajuda

talvez nem leia, peça licença

para uma abertura

 

Ou salvamos a fé de seus equívocos

ou a guerra vencerá

em toda a linha.

Água de batismo, prece convicta

e a natural vontade

ao apagar na areia

 

Ouro de bateia, a fé é ofício

não serve para emoldurar igrejas

nem comprar o púlpito

faz parte da razão e sua rústica

comunhão de trigo

 

Porque raciocina, Deus vê

o obscuro apelo do monturo

Pula o muro a cabra em pastoreio

o corpo migra da oração

para a argila. É o abandono

que inventa a pedra sem conflito

 

Convívio de opostos

exatidão de cismas, a religião

é a sombra do sepulcro

O espírito visita a claridade

Há uma cidade à espera

da áspera profecia

 

 

ESCREVO

Escrevo romances esquecidos

poemas dispersos, contos ocultos

Escrevo memórias tristes

artigos aos pulos, biografias

da indústria, currículos infames

 

Escrevo ideias vadias

canções recolhidas no lixo

ensaios absurdos, textos

sem assinatura, literaturas

perdidas, lendas avulsas

 

Escrevo por puro artifício

vocação fora do assunto

compulsão doentia, servidão

de herança,  situação aflita

repertório tardio, luzes pífias

 

Escrevo como Deus manda

quando está distraído e decide

permitir que o vício assuma

as dores da virtude. Escrevo

como quem persegue a epifania

 

 

OUTRO MAR

Venha ao mar, dizem, convictos

mas o mar eu imagino

 

O mar mesmo, decisivo

não é o mar do meu estilo

 

Prefiro o mar de menino

que eu deixei sem arrimo

 

O monstro mar infinito

não o mar que está na esquina

 

Já vi o mar, não repito

a emoção de descobri-lo

 

Não quero o mar de rotina

previsível na notícia

 

Quero o mar que está comigo

como parceiro de briga

 

O mar que não me abandona

como um verdadeiro amigo

 

O mar que o poema inventa

para lhe fazer justiça

 

 

TUTANO

Raspei o verso até o osso

ficou exposto o tutano

herança quando fui moço

galope de potro solto

 

Cortei a carne do acervo

promovi denso alvoroço

e recolhi o que ouço

no couro de tronco oco

 

Tambores de gritaria

rugidos de fera humana

ventos a mil por hora

ordens presas na garganta

 

Pedras que atiram longe

em alvos sem importância

estrela que vem do frio

e leva ao mar seu incêndio

 

Passei a limpo os gemidos

consegui sair a tempo

recitei trilhas de trevos

obedeci porque é cedo

 

 

Nei Duclós é poeta, escritor, jornalista. Nasceu em Uruguaiana, atuou em Porto Alegre e outras cidades, agora vive em Florianópolis. É autor de quase 20 livros, desde poesia e romance, a crônicas e literatura infantil.
Para se abastecer mais da poesia de Nei Duclós e acompanhar seus escritos sobre literatura, jornalismo, política, entre outros interesses, acesse seu blog Outubro (de onde extraímos esses 12 poemas), seu site Consciência Org ou seu Facebook
Para conhecer sua obra e trajetória, acesse a Wikipédia.

 

 

 

 

 

 

 

 

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