3º Neurônio | opinião

No Natal, melhor um livro para as crianças do que um brinquedo de matar

As palavras são o nosso melhor colete à prova de balas contra a discriminação e a marginalidade. O Seguinte: reproduz a coluna de Juan Arias publicada pelo El País

 

Se deixarmos uma criança pobre escolher um presenteentre um livro e uma arma de brinquedo, provavelmente escolheria a arma. Ainda não sabe que as armas defendem contra a morte física, mas não contra a injustiça, a desigualdade social ou a tirania, que é do que mais vão morrer. Ninguém lhes explicou que, escondidas no livro, há histórias reais ou fantasiosas que as ajudarão a entender por que a felicidade não é alcançada com a violência, mas caminhando na vida de mãos dadas, sem desistir dos sonhos.

Natal significa, em sua etimologia, uma história de vida e não de morte, de alguém que nasceu há mais de dois mil anos, na Galileia, e em seguida seus pais tiveram de fugir com ele para o exílio no Egito, porque o imperador Herodes queria matá-lo. Tinha medo dele. Estava certo, porque quando cresceu aquele menino defendeu coisas que faziam tremer os poderosos que desprezavam os pobres e aleijados. Não abençoou os violentos, mas os semeadores da paz.

As crianças pobres ainda não sabem que o que as discrimina na vida é carecer de um punhado a menos de palavras que as outras. Na Itália, Don Milani, um dos pioneiros da educação alternativa, dizia que o que diferencia uma criança rica de uma criança pobre é que possui 500 palavras a mais para triunfar e se defender na vida. As palavras são o nosso melhor colete à prova de balas contra a discriminação e a marginalidade.

Uma criança pobre de linguagem, que não lê, que tem sua fantasia atrofiada, está vazia de histórias, é fácil escravizá-la. Nossa melhor defesa na vida é saber usar nossas palavras para que não nos enganem. Aqueles que leem, e que a leitura obriga a refletir, o poder tem mais dificuldade de domesticar. O "sim senhor" do escravo quem produz é o analfabetismo. Os pobres não sabem usar a interrogação. Eles não perguntam, não discutem com o poder. Não vão usar o porquê. Ficam calados quando são esmagados.

Aquele menino judeu de quem celebramos o Natal, aos 12 anos, dizem as histórias sagradas, já discutia com os doutores do Templo. Já questionava os pais. Sabia defender sua liberdade. E quando, inocente, foi crucificado como subversivo, agonizando encarou Deus: "Por que me abandonaste?" Foi um homem livre, capaz de se interrogar e de interrogar o poder humano e divino porque sabia discernir entre a verdade e a mentira, a virtude e a hipocrisia. A ignorância nos acorrenta e apequena. Somente o conhecimento, que os livros nos oferecem, nos torna homens livres. O profeta da Galileia, defensor dos fracos, veio dizer "Eu sou a palavra e a vida". Se as armas estão associadas com a morte, as palavras geram a vida.

Daí o movimento atual deste Natal no Brasil e em outras partes do mundo para distribuir livros em vez de objetos de consumo. Tal como acontece com as crianças, também com os idosos os livros produzem o milagre de nos renovarmos, de nos defendermos contra a pobreza espiritual e intelectual que nos rodeia. E será assim ainda mais no mundo que se aproxima da robótica, da inteligência artificial e da biociência.

Nunca ouvi dizer que o presente de uma joia ou um perfume mudou uma vida, curou uma depressão, salvou de um suicídio ou abriu as portas para uma mudança de vida. Um livro e até mesmo um poema é capaz de fazer isso. Um livro pode nos devolver a fé perdida ou a esperança destruída. E eles são o antídoto para a solidão. Quando você lê, está cercado de personagens. O objeto de consumo mais cobiçado nunca fará essa transformação.

Quando eu era criança, nossos pais, que eram professores de escola em uma pequena cidade montanhosa, não podiam nos comprar brinquedos nem livros. A guerra civil tinha criado pobreza, escassez e fome. No Natal, porém, meu pai, que era agnóstico, mas de profunda consciência social, nos dava um presente que nunca esqueci. Ele nos reunia na pequena cozinha a lenha. À luz de uma candeia a óleo combustível, lia para nós uma história que tinha inventado. Nós o ouvíamos com a felicidade que a cumplicidade entre pai e filhos cria. Contava histórias de cidades distantes que ele nunca havia visitado. Nós viajávamos para elas em seu relato. Muitos anos se passaram. Aquelas histórias de meu pai me ensinaram não só palavras para me defender na vida, mas o gosto pelas viagens. Aconteceu que, aguçado provavelmente pelas histórias de meu pai, acabei sendo jornalista, o que me permitiu percorrer o mundo várias vezes. Mas há uma cidade, a de um daqueles contos de Natal, que permaneceu tanto em minha memória que acabou sendo a que mais visitei e continuo visitando na minha vida: Veneza, uma das cidades invisíveis de Italo Calvino. A cobiçada por todos os escritores e artistas, a fantasia construída de água e arte.

Os objetos de consumo são como nozes vazias. Você as quebra e não têm nada dentro. Os livros e as palavras são sementes que você planta dentro de si e sempre acabam brotando. No Brasil, a libertação dos escravos não existiu porque ao deixá-los livres lhes foi negado o direito à educação. Negaram-lhes as palavras. Hoje, os descendentes desses escravos ainda carregam em seus ombros o peso de não terem podido armar-se com a couraça do conhecimento. Ninguém os ensinou, quando deveriam ter feito isso, a se interrogar e se defender. Foram gerações sem livros e sem instrumentos para poder dizer "não!" aos que os usaram e depois os esqueceram.

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