Faxineira, doméstica, balconista de loja, depois dona de um restaurante na altura da parada 59 entre Cachoeirinha e Gravataí, que acabou falindo, até virar a primeira dama da noite da aldeia dos anjos. Natural de São João do Sul, então distrito de Sombrio, em Santa Catarina, saiu da roça e migrou para o Rio Grande do Sul há 52 anos.
Ela é para os nem tão íntimos, a dona Maria Ivonete da Silva, uma distinta senhora de 63 anos que transborda simpatia, alegria, não tem papas na língua e não economiza palavras para contar sua história. Para os amigos, atende pelo nome que a popularizou na noite do Vale do Gravataí, a Tia Ivonete.
De uma família numerosa, três irmãos e quatro irmãs – uma delas a ex-vereadora Ana Fogaça, de Cachoeirinha, Tia Ivonete é mãe de quatro meninas. Três biológicas e uma adotiva. Eliane (de 42 anos), Ana Paula (40), Karolina (32) e Lisiane (22). As três primeiras, comerciantes, e a mais nova, a adotiva, estudante.
O Seguinte: encontrou Tia Ivonete no interior de Glorinha, numa localidade chamada Rincão São João, em um confortável sítio de 1,6 hectare onde mora há um ano ao lado do marido, Jorge Osmar de Mello, 60 anos, com quem está casada há 16 anos. A reportagem foi recebida com um farto café da tarde, em que não faltou o pão caseiro e um saboroso queijo colonial.
— Pode tomar a vontade. Foi passado agora — disse, sobre o café, a ex-dona da boate mais famosa da região na primeira década dos anos 2.000.
O começo
Maria Ivonete ainda não era a “tia” quando abriu a sua primeira casa noturna. Era a Paradise, que ficava ao lado da Igreja Nossa Senhora de Fátima, na parada 59 da avenida Dorival de Oliveira, separada apenas pela avenida Marechal Rondon. Começou com – somente! – duas meninas, como eram – e são! – chamadas as mulheres mais jovens que se prostituem.
Isso foi há cerca de 25 anos.
Lá por 1994, ou 1995.
Depois o número de meninas que recepcionavam os clientes da casa aumentou. Mas nem perto do total de garotas que empregava quando se tornou a “tia”.
— Quando eu fui para a (boate) Tia Ivonete, na (RS-) 118, comecei com 82 mulheres. Só 80 a mais! — conta ela, acrescentando que isso aconteceu por volta de 1999. Ou ano 2000. Ela não memorizou as datas exatas.
Filosofia
Tia Ivonete tinha um diferencial no trato com as mulheres da boate.
Sempre combateu ferozmente o uso de drogas e que fossem levados entorpecentes para dentro da casa. Ao ponto de, certa feita, ter obrigado uma das prostitutas a engolir uma “bituca”, “bagana”, ou “baseado”, de cigarro de maconha que encontrou dentro de um maço de cigarros.
Depois a expulsou da boate. Mas no outro dia readmitiu a moça porque ficou com pena dela, que lhe implorou pelo emprego já que necessitava do dinheiro.
Organizava palestras – levava médicos ou técnicos de enfermagem até a boate – de promoção à saúde e sexo seguro, e pregava a valorização do corpo, dizendo que antes de qualquer coisa as meninas precisavam amar a elas mesmas.
Por fim, que as garotas explorassem ao máximo o poder financeiro dos homens que buscavam diversão e prazer na noite, evitando o quanto pudessem a relação sexual. Tanto que na boate Tia Ivonete – o prédio ainda existe e o nome ainda está na fachada – havia apenas um quarto para “os finalmentes” das meninas com os clientes.
— Sempre fiz reuniões com elas (as garotas da boate) para elas se valorizarem, se amarem… Para que tirassem todo dinheiro que pudessem, dos homens, no salão, sem ir para a cama, para o quarto — lembra a ex-dama da noite da aldeia.
Lágrimas
Perguntada se era uma boa “chefe” para as meninas que buscavam na prostituição uma forma – nem tão! – fácil de ganhar dinheiro, Tia Ivonete se emociona ao dizer que sofria ao vê-las enfrentando as mazelas do cotidiano e lembrar, por exemplo, da passagem de datas importantes, especialmente o Dia das Mães.
— Eu creio que sim, eu era uma boa chefe. Porque eu chorava junto com elas, com os problemas delas. Principalmente Dia das Mães e no final do ano.
Segundo Tia Ivonete, estas datas eram as mais difíceis e complicadas.
— A gente se atracava no choro, todo mundo, no salão… Eu ficava na copa analisando elas, sentadas, esperando os clientes. Véspera do Dia das Mães e elas todas, ou a maioria delas, mães… Com os filhos esperando em casa! — fala, voz embargada.
— Eu sempre lutei para que não tivessem gigolôs, amantes que tirassem dinheiro delas. Porque os gigolôs delas eram os filhos das suas meninas. Vocês têm que trabalharem para dar dinheiro para os filhos de vocês, e não para barbados aí na rua — diz, revelando outra de suas filosofias de trabalho.
EM DETALHES
1
A menina mais velha que trabalhou para a Tia Ivonete se chamava Beth, à época com 47 anos. “Mas botava muita guria de 18 anos no bolso, tinha um corpão…”, garante.
2
Logo que abriu a boate, o funcionamento era de segunda à segunda, todas as noites. Com a própria Tia Ivonete no comando da casa.
3
Depois o funcionamento passou a ser de segunda-feira aos sábados, fechando aos domingos, e em certas noites quase 90 meninas trabalhavam na c asa.
4
Por fim, Tia Ivonete “se permitiu” folgar aos sábados, mas sem fechar a boate. O gerente tomava conta da função.
5
A boate Tia Ivonete, localizada na RS-118 próximo do viaduto da avenida Dorival de Oliveira, fechou as portas em 2010 quando ela vendeu o prédio.
FRASE
— A noite é uma criança, só que é preciso saber embalar esta criança. Se não, a gente amanhece toda mijada!
Tia Ivonete, dizendo que a pessoa que frequenta e vive a noite se desgasta muito, financeira, física e psicologicamente.
A clientela
Mesmo sendo um ponto que todos viam como sendo, ou falavam que era de prostituição, o fato de disponibilizar apenas um quarto para as reais conjunções carnais fazia com que a casa fosse, na realidade, muito mais um ponto de encontro para lazer, desopilar, beber e, quem sabe, sair dali com uma das meninas.
Segundo Jorge Mello, o marido, técnico de manutenção em mecânica industrial, também já aposentado, muitas pessoas frequentavam a Tia Ivonete como se estivessem participando de “um bailinho”. Quase sem a maldade característica de quem sai para a noite com intenções predatórias.
— Eu tinha muitos clientes, casados, empresários de Cachoeirinha e Gravataí, que iam com suas esposas. Eles diziam que se sentiam mais seguros lá dentro do que em muitos outros lugares de festas da região.
Esta segurança, segundo a ex-dona da boate, se traduzia no fato de as esposas destes frequentadores nunca serem importunadas pelos homens que estavam desacompanhados no local. Do outro lado, nem as meninas da casa ousavam se insinuar para os maridos que estavam com suas mulheres legítimas.
Tia Ivonete chega a considerar que chamar a boate que comandava como casa de prostituição chega a ser um exagero.
— Muitos casais iam lá para dançar, tomar cerveja e se divertirem — garante.
E conta que não raro, lobos solitários da noite sentavam, tomavam uma bebida qualquer e, quando surgia a oportunidade, a chamavam para conversar. Pediam conselhos, inclusive sobre assuntos de família envolvendo esposas, noivas, namoradas, e queriam opiniões sobre como proceder diante de certas situações.
PERGUNTINHA
Seguinte::
— Tia Ivonete, seus clientes eram muito exigentes?
Tia Ivonete:
— Mais ou menos… Depois da segunda ou terceira cerveja, daí embalava…
O preconceito
O dito popular segundo o qual a prostituta é uma mulher de vida fácil não é verdadeiro na opinião da Tia Ivonete. Aliás, isso é mito! A razão, segundo explica, é principalmente pelo preconceito que as suas meninas – e todas as outras que fazem da prostituição uma profissão – sofriam e sofrem.
Ela própria enfrentou muitas situações preconceituosas.
— (Enfrentei) muito, muito preconceito. De todo tipo. É puta! É puta! Eu perdi até a família. É sério — revela, apontando para a prima Maria Zoé Baltazar e o marido dela, Osvaldo de Borba Silveira, moradores de Tramandaí e que estavam visitando Ivonete e Jorge quando o Seguinte: foi entrevistá-la.
O casal levou um saco de papa-terra, peixes do mar, para o jantar…
— Eu ia na casa dessa aqui (Zoé). Essa aqui nunca me disse “tu é puta, não vem na minha casa”… Ela e o esposo. E eu ia na casa dela, sendo dona de um cabaré. Eu ia lá, a gente almoçava juntas, dávamos risada… Daí eu pegava minhas filhas, botava no carro e vínhamos embora.
O preconceito afastou Ivonete, por exemplo, dos restaurantes da região. Ela até evitava e, quando queria sair, viajava com as filhas para fora do estado. Principalmente, como Laguna e Florianópolis, na vizinha Santa Catarina. Isso depois de ter o dedo apontado por outros frequentadores quando, por algumas vezes, foi a restaurantes da região.
A dor de barriga
: Era comum, segundo conta, quando entrava em um restaurante de Gravataí ou Cachoeirinha, homens que estavam acompanhados pelas esposas ou famílias até virarem o rosto para não ter que cumprimenta-la.
: Houve um caso em que um proprietário de restaurante, ao vê-la chegar, teve um colapso intestinal, se abaixou atrás do balcão e saiu de fininho, quase rastejando, em direção ao banheiro.
Pelos fundos
: Foram várias as situações em que esposas foram à boate Tia Ivonete buscar os maridos que, descobriam, estavam no local.
: Tia Ivonete os tirava da casa pela porta dos fundos e ficava com a chave do carro do marido descoberto.
: Entregava a chave ao segurança da sua confiança com orientação de que pegasse o carro explicando à esposa que havia tomado emprestado “do fulano”, o marido.
Só no tapa
: Certa feita um cliente estava cheirando uma carreira de pó – cocaína – em uma das mesas da boate. Tia Ivonete foi alertada e pessoalmente resolveu a questão.
: Quando a pessoa enrolou uma nota de R$ 2,00 para aspirar a droga, ela passou a mão sobre a mesa e jogou todo o pó no chão.
: Quando o cliente levantou-se para revidar, foi agarrado por Tia Ivonete que dispensou o auxílio dos seguranças e, conta, colocou o homem na rua. A tapas!
Vale a pena assistir ao vídeo da entrevista do Seguinte: com a Tia Ivonete. É só clicar na imagem abaixo!
Tia Ivonete em fotos: