Como presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Gravataí, não poderia deixar de compartilhar o artigo do engenheiro civil e historiador Luiz Antonio T. Grassi, publicado pelo Sul21.
Reproduzo o texto.
Senhor governador, há algum tempo escrevi para o senhor esclarecendo alguns pontos importantes que um mandatário devia saber sobre a gestão pública das águas e os assuntos correlatos. Refiro-me aos usos da água para o abastecimento para as populações, para a indústria, para a produção agropecuária, para a navegação, para a geração de energia elétrica, etc. Refiro-me, especialmente, depois das enchentes de 2023 e 2024, assim como das estiagens dos últimos anos, ao enfrentamento das mudanças climáticas e suas repercussões sobre as relações dos nossos rios com a sociedade. Certamente o senhor não leu e, se leu, não entendeu o que eu quis esclarecer.
As ocorrências recentes, principalmente as verdadeiras catástrofes ambientais de 2023 e 2024, realmente mexeram com a sociedade e com as autoridades, no âmbito federal, estadual e municipal. A partir dos eventos, especialmente o de maio, ficou muito claro que é preciso tomar medidas preventivas e remediadoras para enfrentar esses fenômenos que, sabemos, não são propriamente naturais e que possivelmente se acentuarão. Além de provocados globalmente pela nossa sociedade, foram agravados pela falta de políticas públicas que poderiam ter prevenido ou, ao menos, minimizados seus efeitos desastrosos.
Nosso Estado tornou-se o foco de uma das maiores catástrofes provocada por fatores climáticos que repercutiu por todo o mundo. Repentinamente, as autoridades federais, estadual e municipais foram obrigadas a encarar os enormes prejuízos e a pensar em ações preventivas. Nunca a palavra “resiliência” foi tão usada, como se seu próprio som tivesse efeitos mágicos…
Diante desses eventos, o senhor, juntamente com o prefeito da Capital e uma robusta comitiva resolveram buscar as soluções nos distantes Países Baixos. Pelas notícias da nossa imprensa tradicional, todos vocês estão impressionados com a experiência neerlandesa. Certamente é uma notável experiência de um país que tem grande parte do seu território abaixo do nível do mar, ou seja, historicamente conquistado às águas e protegido por diques. Não é o caso do Rio Grande Sul, que não apresenta nenhuma área com essa condição.
Parece que os senhores ficaram impressionados com algumas medidas de gestão ambiental como a reserva de espaços, nas bacias do rio Reno e do rio Mosa, como áreas de inundação natural, que não devem ser usadas para habitação ou outros usos. E também devem ter ficado impressionados com o sistema de diques que protegem as populações – principalmente das águas do mar, mas alguns também dos dois rios que tem seus cursos inferiores desaguando em território neerlandês. Fala-se que o senhor e as demais autoridades vão implementar a participação da sociedade, através de conselhos ou comissões, para a definição de soluções para as enchentes e as estiagem espelhadas no modelo que estão visitando e os impressionou.
Da minha parte, senhor governador e companheiros de viagem, fico impressionado que os senhores desconheçam a experiência gaúcha, que, há mais de trinta anos, construiu um sistema de gestão bem mais adequado do que o holandês, dotou-o de uma lei específica que ainda está em vigor (embora não cumprida), a Lei 10.350/94.
E não é só isso, senhor governador e acompanhantes, nosso Estado já conta com as estruturas de participação social, tanto da sociedade civil quanto com representantes dos setores usuários da água: os Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica (criados oficialmente pela referida lei). Aliás, é bom lembrar que apenas a Região Hidrográfica do Guaíba tem uma área de 84.763 km², o dobro da área dos Países Baixos (41.865 km2). A bacia hidrográfica do rio Ibicuí, integrante da Região Hidrográfica do Uruguai, somente ela, tem mais de 35.000 km². E a Lei Gaúcha das Águas criou vinte cinco comitês de bacia, abrangendo todo território riograndense, de mais de 280.000 km².
Os vinte cinco comitês estão todos ativos, embora abandonados pelo governo estadual. Todos foram criados e organizados desde o final dos anos 90. A exceção é dos dois primeiros, o Comitê Sinos e o Comitê Gravataí, criados com forte participação da sociedade e de técnicos de várias instituições governamentais, no final dos anos 80. Esses dois foram modelo não só para a Lei 10.350, como também para os mais de duzentos comitês em atividade, hoje, no Brasil. Portanto, senhor governador, não é necessário criar “conselhos regionais” para precaver-se de novos eventos climáticos. A primeira medida da Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SERG) deveria, necessariamente, acolher e ouvir os comitês das bacias atingidas pelo evento climático.
O Secretário da Reconstrução deveria saber, de antemão, que cada bacia hidrográfica, em especial aquelas dos rios que transbordaram, tem, por lei, que aprovar um “Plano de Bacia”, ou seja, um planejamento do manejo das águas da respectiva bacia, dos usos da água e dos corpos hídricos e, em especial, depois do evento climático, medidas de proteção contra as ocorrências de excesso (cheias) ou de escassez (estiagens) das águas. Esses Planos também podem e devem indicar ações de preservação ambiental na bacia.
É preciso que se diga que os comitês que conseguiram gerar seus Planos de Bacia e aprová-los, o fizeram praticamente de forma autônoma e, em vários casos sem o mínimo das instâncias governamentais que deveriam apoiá-los, de forma especial a Secretaria do Meio Ambiente (que agora também, sintomaticamente, é de Infraestrutura…) com seu Departamento de Recursos Hídricos. Antigamente, o DRH apoiava, aconselhava e provia os comitês…
De qualquer forma, sr. governador, por mais precários que sejam os Planos das bacias cujos comitês conseguiram levá-los a cabo, muitas das decisões, recomendações e medidas poderiam ter evitado, ao menos, alguns dos danos que tivemos recentemente, especialmente nas bacias do Sinos, do Jacuí, do Lago Guaíba, do Caí e dos rios Taquari e Antas.
Todos, nesse Estado, governo estadual e prefeitos, deviam saber que um plano de bacia dialoga com planos municipais de uso do solo urbano, de usos agropastoris, de transporte hidroviário, de geração de energia hidroelétrica, assim como os diversos planos setoriais estaduais. E estabelece condições para esses usos na respectiva bacia, de forma a compatibilizar os mesmos com as realidades ambientais. Loteamentos que são criados em áreas alagáveis (como aconteceu em Eldorado do Sul), a falta de manutenção de diques de proteção (como em Porto Alegre), as intervenções indevidas em áreas de proteção (como sofreu a bacia do Gravataí) e muitas outras práticas e ações que, acompanhando o crescimento populacional, geraram os danos de 2023 e 2024, poderiam ter sido evitadas ou corrigidas com a aplicação, com as correções permanentes dos Planos de Bacias.
Possivelmente, poderá ser dito que parte dos planos são precários, incompletos e que não contemplariam todas as situações críticas que afligiram nossa população. Obrigatoriamente, porém, será necessário reconhecer que o Executivo estadual não cumpriu, até hoje, o que a Lei 10.350 determinou: a criação efetiva dos órgãos técnicos auxiliares dos comitês, as Agências de Região Hidrográfica. Sejam essas ou, como já existe projeto na Assembleia Legislativa, um Instituto Gaúcho das Águas que abrangeria todas as bacias. A sugestão está dada, sr. governador: criar esse organismo técnico permanente como parte da reconstrução do Rio Grande do Sul. De qualquer maneira, sr. governador e caros acompanhantes, procurem saber o que existe e o que ocorre sob suas vistas e poderão dispensar essa certamente cara consultoria que, por mais bem intencionada que seja, nos deixa, aos gaúchos que sofreram e ainda sofrem, indignados por vocês buscarem tão longe o que temos aqui.
*Esse artigo é uma homenagem à memória do economista Eugenio Miguel Canepa, a quem o Sistema Estadual de Recursos Hídricos deve uma inestimável contribuição