nó da vida

Nunca vai ser tarde

Por alguns meses da minha vida – há quinze anos – convivi diariamente com a rotina de um hospital, conhecendo os maiores lutadores que meus olhos já viram. Bravos guerreiros, guerreiras, que não se entregavam nem após laudos médicos desalentadores. Minha história – mais especificamente com minha mãe – teve um final feliz, mas não era raro ver pessoas do nosso convívio com expressões mórbidas após passar na porta ao lado, mais uma maca tapada com aqueles lençóis brancos.

Grandes e tristes, melancólicas e reveladoras histórias se dão em leitos hospitalares. Umas servem de exemplo. Outras de lição. Como um casal de senhores de idade avançada, mais de 40 anos de casados, onde, dizia-se, os últimos anos, sabe-se lá porquê, haviam sido pesarosos, doloridos, longos. Já não se olhavam mais nos olhos.

Ele, um senhor de estatura mediana, magro, esquálido, abatido, possivelmente em função de um enfisema pulmonar avançado, que corroía suas forças e energias de forma avassaladora. Cabelos ralos, nariz grande, olhos caídos, pálpebras inchadas.

Ela, uma senhora, aparentemente vigorosa, baixa, robusta, cabelos brancos, presos, bochechas coradas. Transparecia calma. Ou resignação. Não demonstrava, num primeiro momento, abatimento. Mas também não parecia indiferente à situação. Estava, talvez, incomodada. 

Ele, deitado no leito, tronco ligeiramente erguido, fios e mais fios ligados. Ela, ao lado, em pé. Horas e horas sem trocar uma palavra, um olhar sequer. Ali, passavam os dias à espera do pior. Era iminente. Inevitável. Os dois sabiam.

Pareciam carregar a culpa de uma união que não terminava da forma esperada. Havia uma grande diferença entre os dois. Ele, cada dia mais fraco, olhava fixo a uma janela lateral. Não exatamente para a janela, mas, para não olhar na direção dela, que ficava no lado oposto. Calmo, aguardava apenas o desfecho de tudo. Já ela, parecia ainda aguardar por algo. Tinha um misto de melancolia e ansiedade em seu olhar, suas ações. Olhá-lo fixamente, remetia, talvez, a um último desejo.

Não pareciam ter um motivo contundente para chegar a tal situação. Possivelmente, era uma soma de indiferenças, desgostos, rotina, orgulho… e, pronto, ali estava mais um casal fadado à prisão de um matrimônio infeliz. Até que em uma manhã bucólica, cinzenta, chegou o momento. Todos nós sabemos que um dia vamos partir. É a única certeza que pode ser compartilhada do mais alto rei ao mais simples servo.

Os fios ligados às máquinas deixaram de apitar para se tornar um barulho regular, retilíneo, sem interrupções. O coração havia desistido de lutar. Recostada ao seu leito, ela não expressou maior comoção. Com os olhos marejados, consentiu com a cabeça aos enfermeiros que desligavam os aparelhos.

Com a indicação de que teria alguns minutos antes que o corpo fosse transportado para o lugar apropriado, esboçou o maior dos afetos desde que ele havia baixado o hospital, há cerca de dois meses. Sem ninguém por perto, segurou firme em sua mão, puxando-a até seu rosto. Fechou os olhos, apertou forte contra si, até que as lágrimas escorreram rosto abaixo. Por alguns segundos a cena era aquela. Pesava no seu peito o remorso de não ter feito isso antes dele partir. De deixar com que seu orgulho, ou mesmo a indiferença mútua, pesasse sobre seus sentimentos de uma forma a que torturasse seu próprio coração.

Quando, lentamente foi soltando sua mão, eis que, abruptamente, sentiu apertando em seu pulso, a mão dele. Os médicos chamaram a isso de contração involuntária dos músculos, provocado pela perda de todo ATP (adenosina tri-fosfato), que é necessária para o processo de relaxamento. Mas não se atreveram a esclarecer para aquela senhora.

Para ela, aquele era o gesto de amor tão aguardado há quase 20 anos. A ansiedade que a tomou nos últimos dias, era, justamente, para que soubesse de alguma forma que, por mais nublado que o final tenha sido, a chama do amor ainda perdurava guardada em algum lugar.

A certeza veio após sua partida. Naquele gesto que, para os médicos foi uma contração involuntária de músculos, para ela, o tão desejado afeto, requerido veladamente por anos. No dia de sua partida, mesmo sem vida, ele a provou, através deste gesto, que ainda reservava no seu destino, um espaço a quem, por tantos anos o acompanhou.

Nunca é tarde para demonstrar amor. É recomendável deixar o orgulho, sob pena de fazer com que a graça da vida vire migalha ou fardo. A solução mágica que todos buscam a um mundo combalido está dentro de cada um e se chama capacidade de amar. Ser generoso, paciente, em todos os ambientes que se vive, é, também, amar. A gente ainda vive num mundo que se surpreende com gentilezas.

Mesmo que as flores já não tenham o perfume de outrora, nem mesmo o colorido pujante. Ainda que suas pétalas pareçam secas, que os espinhos sejam mais salientes. Se há vida nas flores – mesmo que já não pareça mais haver – há sempre tempo para regá-las.

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