Duas diaristas que também são carpideiras, nas horas vagas; um imigrante ucraniano que foi para Portugal para trabalhar na construção civil; um patrão que assedia a empregada. Essas são histórias de envolvimento, de sofrimento, de exploração, de melancolia, de saudade e de riso que se entrecruzam pelas vidas dessas personagens, na obra O apocalipse dos trabalhadores (2013), do escritor português Valter Hugo Mãe.
maria da graça e quitéria (despidas de letras maiúsculas, como todos os demais nomes e inícios de frase do romance) são duas mulheres-a-dias (como se chamam as diaristas em Portugal). Trocam confidências sobre suas vidas, seus problemas, seus sonhos e suas frustrações. andriy é o namorado de quitéria, e tenta, ao longo da obra, transformar-se em máquina, como forma de superar as dificuldades de viver num país estrangeiro onde não consegue se comunicar. portugal é o cão, “quadrado castanho cheio de pulgas”, numa referência simbólica criticamente eloquente sobre o país. Vários são os personagens, em sua maioria “trabalhadores fodidos”, que vivem uma vida de restos emocionais e tentam superar suas agruras.
A obra é de uma beleza tocante, com cenas muito bem-humoradas que revelam as profundezas e as angústias das protagonistas e de todos os outros que com elas se relacionam. São personagens comuns, com dramas comuns, que nos comovem porque nos identificamos com eles.
a terra dos trabalhadores, pensou maria da graça, deus talvez nem saiba onde isso fica, se isso fica assim metido entre a terra dos outros homens e das outras coisas. pousava a vassoura no chão, acumulava o pó num canto, via-o amontoar-se como uma obra a crescer. quanto mais pó, mais trabalho à mostra. depois o detergente para o chão, depois as ceras, depois deixar secar e rezar para que ninguém por ali passasse antes de estar seco, ou ficariam marcadas as patorras do burro que destruiriam o brio do trabalho das mulheres-a-dias. talvez pela injustiça deus devesse aparecer numa altura como essas e não só limpar de novo, e com a mesma impecável qualidade, como dotar as mulheres de uma força mais incansável, uma energia feliz que não se esgotasse e pudesse contentar os patrões para que lhes pagassem sem hesitação o dobro das misérias que lhe pagavam. (…)"
É uma obra essencial, de um autor também essencial em língua portuguesa, elogiado, inclusive, por José Saramago. Trato sobre ela, hoje, porque o título é altamente sugestivo na semana em que tivemos o apocalipse dos trabalhadores no Brasil, com a aprovação da Reforma Trabalhista.
Se, na obra de Valter Hugo Mãe, maria da graça pensa que deus não sabe onde fica a terra dos trabalhadores, aqui no Brasil, desconfio que os senadores, os congressistas, o governante nacional também não saiba. Ou, na verdade, não se importem com isso.